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Cinema, Cinema japonês, Era dourada do cinema japonês, Fantasmas, Filme de época, Katsuo Nakamura, Keiko Kishi, Masaki Kobayashi, Michiyo Aratama, Osamu Takizawa, Rentarō Mikuni, Tatsuya Nakadai, Terror
Quatro histórias fantásticas do Japão medieval constituem “Kaidan”. “Cabelo Negro” conta como um samurai abandona a mulher por riqueza, casando socialmente mais acima, para se arrepender e voltar anos depois à casa onde foi feliz, aí é recebido pela primeira mulher, que permanece igual, mas acontecimentos fantasmagóricos vão transformar a noite em tragédia. Em “A Mulher na Neve”, um lenhador perdido na neve, vê uma mulher-fantasma matar o seu parceiro, mas poupá-lo, na condição de que ele nunca conte o sucedido. O lenhador virá a casar e ter vários filhos, até perceber que a mulher que desposou é o fantasma de anos atrás. Em “Hoichi, o Sem Orelhas”, Hoichi é um músico cego que serve no templo, e canta sobre batalhas passadas. Um dia um estranho samurai chama-o para cantar para um público desconhecido. Os padres descobrem mais tarde que este público são fantasmas, e que a vida de Hoichi está por isso em perigo. Finalmente, em “Numa Chávena de Chá”, um escritor conta o conto inacabado de um samurai que vê constantemente reflectidos em chávenas rostos dos seus inimigos.
Análise:
Com um nome que literalmente significa “histórias de fantasmas”, “Kaidan”, é uma obra de Masaki Kobayashi que segue uma tradição do cinema e literatura japoneses, o folclore tradicional no que diz respeito a lendas de espíritos e fantasmas que se inter-relacionam com a história antiga do país. Tal é o que Kobayashi faz, ao adaptar contos do livro de Lafcadio Hearn, o autor grego de ascendência irlandesa responsável pela colecção “Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things”.
Masaki Kobayashi era já um consagrado realizador, fruto da nova geração que transformou o cinema japonês no pós-guerra. Célebre pela trilogia “A Condição Humana” (Ningen no jôken, 1958–1961), que lida exactamente com o pós-guerra, e pelo filme de época “Harakiri” (Seppuku, 1962), Kobayashi explorava agora o folclore, com um revisionismo próprio de quem vive num país em balanço e reconstrução.
Com quase três horas de duração, e a narração de um narrador omnisciente, “Kaidan” divide-se em quatro histórias. Estas são: “Cabelo Negro” (Kurokami), “A Mulher na Neve” (Yuki-Onna), “Hoichi, o Sem Orelhas” (Miminashi Hôichi no hanashi) e “Numa Chávena de Chá” (Chawan no naka). Todas elas são a cores, e filmadas integralmente em estúdio, com uma cenografia que passa por reconstruções rigorosas dos espaços onde os personagens se movem (florestas, templos, campos gelados), contra céus e horizontes feitos de pinturas estilizadas de enorme beleza estética, conferindo um irrealismo poético às histórias.
A primeira história mostra-nos um samurai (Rentaro Mikuni), que em tempo de paz definha, num casamento pacato, mas abaixo da sua condição social. Um dia, o samurai toma a decisão, abandona a esposa (Michiyo Aratama) e viaja até encontrar uma mulher com quem casar que lhe traga outro estatuto. Cedo o samurai lamenta a decisão, pois não sente amor pela segunda esposa. Anos mais tarde, findo o seu termo de serviço na nova posição ocupada, o samurai abandona a segunda esposa, e regressa a casa da primeira. Aí vai encontrar toda a aldeia como um cemitério, e a sua antiga casa a cair aos pedaços. Mas num canto da casa tudo parece impecável, inclusivamente a sua primeira mulher, que o espera, como se nem um minuto tivesse passado. Depois de uma noite de amor, o samurai acorda para descobrir que a mulher morreu muitos anos atrás deixando só um cadáver decomposto. O que resta ainda é o belo cabelo negro que ele tanto amava, e que passa a persegui-lo pela casa, roubando-lhe juventude, e por fim deixando-o morto como um velho.
A segunda história conta-nos como Minokichi (Tatsuya Nakadai), um jovem lenhador que regressava a casa com o seu mentor mais velho, é apanhado numa tempestade de neve. Abrigando-se numa cabana, vê o fantasma de uma mulher (Keiko Kishi) matar o seu companheiro, mas poupá-lo, sob condição de nunca revelar o que aconteceu naquela noite. Minokichi retoma a sua vida, e casa com uma jovem que viajava pela região, Yuki (novamente Keiko Kishi), com quem é feliz por muitos anos e que lhe dá vários filhos. Um dia, Minokichi percebe que a esposa é parecida com o fantasma que viu anos atrás, e resolve contar-lhe a história. Furiosa pela quebra do juramento, Yuki confessa ser ela o fantasma, e abandona a casa, apenas poupando Minokichi por respeito aos filhos de ambos.
A terceira história, após uma introdução sobre a guerra que opôs os clãs Taira e Minamoto no século XII, imortalizada no conto épico “O Conto dos Heike” (Heike Monogatari, uma espécie de “Ilíada” do Japão), conta-nos a história de Hoichi (Katsuo Nakamura), um músico cego que serve num templo budista. Um dia, encontrando-se sozinho, Hoichi recebe a visita de um guerreiro (Tetsurō Tanba) que lhe pede que o acompanhe e cante para a corte que ele serve. Hoichi fá-lo, tanto nessa noite como na seguinte, despertando a curiosidade do monge principal (Takashi Shimura) que o manda seguir. Assim se descobre que Hoichi está a cantar para uma audiência de fantasmas que o está a enfeitiçar. De volta ao templo, o monge decide que a única salvação é cobrir o corpo de Hoichi com encantamentos escritos. Mas ao esquecerem de cobrir as orelhas de Hoichi, são elas que são levadas pelo guerreiro fantasma.
Na quarta história, o narrador conta como por vezes as histórias do passado nos chegam incompletas, exemplificando na história do escritor (Osamu Takizawa) que, esperando a visita do seu editor, começa a ver caras de samurais na água do chá que vai beber. Depois esses samurais começam a surgir-lhe à frente, mas quando ele os tenta perseguir eles revelam-se fantasmas imateriais, não se sabendo o que lhe aconteceu depois disso.
É sempre complicado para um ocidental poder falar dos segredos encerrados em lendas de um país tão distante (em vários sentidos) como o Japão. Por essa razão, as quatro narrativas de “Kaidan” parecem elusivamente belas, com o mistério a aumentar a sua poesia. Se algo parece claro, é que elas representam as quatro estações do ano, embora em todas se passem sempre alguns anos, elas mantêm uma coesão interna, desde o Outono da primeira história, o gelado Inverno da segunda, a musicalidade primaveril da terceira, e a tempestuosidade de Verão da quarta. Como temas recorrentes temos: o homem solitário em busca de algo mais que reverterá em tragédia, e a vingança por algum erro passado, por parte da natureza que se expressa na forma de espíritos.
O segredo de “Kaidan” está na sua expressividade, no ambiente poeticamente colorido, nos personagens comuns que se deixam seduzir por algo terrível e inexplicável, e por todo um ambiente de conto de fadas. Sobre ele impõe-se a tradição japonesa, desde a maquilhagem hikimayu (que consistia em tirar as sobrancelhas e pintar falsas a meio da testa) e ohaguro (que consistia em pintar os dentes de preto), à música do instrumento biwa, passando pelas roupas medievais, histórias de samurais, e incluindo a declamação teatral cantada, a recordar o teatro kabuki.
Destaque-se ainda a imponente banda sonora de Toru Takemitsu, fazendo uso de música tradicional, para pontuar e marcar os ambientes, criando uma atmosfera irreal, que é também ajudada pela complexidade de efeitos sonoros que acompanham o filme.
“Kaidan” falhou no mercado internacional que esperava um terror baseado em sustos e monstros horríficos, não estando preparado para a subtileza dos contos calmos e poéticos de enorme beleza plástica contados por Kobayashi. Ainda assim, o filme atingiu desde logo uma excelente reputação entre a crítica de todo o mundo, sendo hoje considerado um dos mais belos filmes de sempre de histórias de fantasmas.
Produção:
Título original: Kaidan; Produção: Bungei / Ninjin Club / Toho Company / Toyo Kogyo Kabushiki Kaisha; País: Japão; Ano: 1964; Duração: 175 minutos; Distribuição: Toho Company; Estreia: 24 de Dezembro de 1964 (Japão).
Equipa técnica:
Realização: Masaki Kobayashi; Produção: Shigeru Wakatsuki; Argumento: Yôko Mizuki [a partir do livro de Lafcadio Hearn (conhecido como Yakumo Koizumi)]; Música: Tôru Takemitsu; Fotografia: Yoshio Miyajima [filmado em Eastmancolor, cor por Tohoscope]; Montagem: Hisashi Sagara; Direcção Artística: Shigemasa Toda; Cenários: Dai Arakawa; Figurinos: Masahiro Katô; Caracterização: Shigeru Takagi; Direcção de Produção: Michiyoshi Takashima.
Elenco:
Episódio 1 “Kurokami”:
Rentarô Mikuni (Marido), Michiyo Aratama (Primeira Mulher), Misako Watanabe (Segunda Mulher), Kenjirô Ishiyama (Pai), Ranko Akagi (Mãe).
Episódio 2 “Yuki-Onna”:
Tatsuya Nakadai (Minokichi), Keiko Kishi (Yuki A Mulher da Neve), Yūko Mochizuki (Mãe de Minokichi), Kin Sugai (Mulher da Aldeia), Noriko Sengoku (Mulher da Aldeia).
Episódio 3 “Miminashi Hôichi no hanashi”:
Katsuo Nakamura (Hoichi), Tetsurō Tanba (Guerreiro), Takashi Shimura (Sacerdote Chefe), Yoichi Hayashi (Assistente), Eiko Muramatsu (Kenreiinmon), Kunie Tanaka (Yasaku), Kazuo Kitamura (Taira no Tomomori).
Episódio 4 “Chawan no naka”:
Osamu Takizawa (Autor / Narrador), Noboru Noboru Nakaya (Shikibu Heinai), Kei Satō (Samurai Fantasma), Haruko Sugimura (Madame), Ganjirō Nakamura (Editor), Kan’emon Nakamura (Kannai, Um Guarda), Seiji Seiji Miyaguchi (Velho), Jun Tazaki (Parceiro de Kannai).