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Anna Bonaiuto, Biopic, Carlo Buccirosso, Cinema, Cinema italiano, Drama, Fanny Ardant, Flavio Bucci, Giorgio Colangeli, Giulio Bosetti, Paolo Sorrentino, Toni Servillo
Sete vezes primeiro-ministro, vinte e sete vezes ministro, membro do parlamento ininterruptamente de 1945 a 2013, Giulio Andreotti foi a mais influente figura da política italiana do pós-guerra. Democrata-cristão devoto, aliado da máfia, padrinho de uma teia de corrupção, ou estadista visionário capaz de aceitar compromissos para manter o país à tona, tudo na sua vida é hoje polémico, sendo analisada subjectivamente na interpretação de Toni Servillo, que nos mostra o isolamento e modo de pensar único de um homem ainda hoje incompreendido.
Análise:
Apresentado no Festival de Cannes, onde venceria o Prémio do Júri, “Il Divo”, quarta longa-metragem de Paolo Sorrentino para cinema, era mais um olhar para a solidão humana, na Itália do seu tempo, desta vez com o atractivo extra de tentar examinar uma das mais importantes e polémicas figuras da história recente de Itália, Giulio Andreotti.
A co-produção italo-francesa, ocorreu num momento em que a Itália havia já mudado de regime, mercê da operação de anti-corrupção «Mãos Limpas» que terminou com a partidocracia anterior a 1992, levando ao desaparecimento de vários partidos históricos e ao nascimento de uma novem ordem política, como foi o surgimento da Forza Italia, de Silvio Berlusconi. Andreotti, senador vitalício, um dos fundadores da Democracia Cristã, partido através do qual foi sete vezes primeiro-ministro, vinte e sete vezes ministro, membro do parlamento ininterruptamente de 1945 a 2013 (ano da sua morte), encontrava-se então numa espécie de escrutínio popular. Figura amada por uns, pelo símbolo de conservadorismo cristão e perfil discreto de abnegação e perseverança, e odiada por outros, como o mentor de todo o regime, e portanto responsável pela aura de corrupção e ligações obscuras à máfia, que ainda hoje pesam sobre esse tempo.
Iniciando a narrativa no momento da sua nomeação para o sétimo e último governo Andreotti, Sorrentino, através da interpretação de Toni Servillo (com uma maquilhagem e maneirismos impressionantemente bem conseguidos), caracteriza-nos a figura do político, como homem enigmático, reservado, distante, inescrutável. O Andreotti de Servillo é um homem impávido, de gestos subtis, olhares profundos e presença estoicamente ausente (no que aliás assenta a descrição dos protagonistas de Sorrentino). Parece ser sempre à sua volta que a acção acontece, e esta é a das decisões políticas, congeminações partidárias, e conspirações de movimentos a tomar. Mas tal acontece com Andreotti a decidir pela inacção, a deixar que a corrente acalme, e as decisões se tomem por naturalidade, num status quo que se queria mais forte que qualquer impulso ou improvisação.
Desde logo são-nos apresentados aqueles que em torno de Andreotti gravitam, do mesmo modo que, na habitual montagem quase esquizofrénica de Sorrentino, vamos vendo uma sucessão de mortes e atentados chocantes. Em fundo fica ainda o famoso caso do rapto e morte de Aldo Moro, o líder da Democracia Cristã, raptado pelas Brigadas Vermelhas em 1978, cuja morte Sorrentino insinua ter sido bem-vinda por Andreotti e Francesco Cossiga, que assim se livravam de um rival que teria muito para contar. Todo o filme passa então por vinhetas do dia a dia de Andreotti, nos seus momentos íntimos, em casa, com a esposa Livia (Anna Bonaiuto), no confessionário, nas entrevistas com os seus acólitos, no parlamento, nos momentos a sós em caminhadas em torno do palácio do governo, e por fim, nos inquéritos judiciais do caso que ficou conhecido como «Tangentopoli», que pretendia determinar as suas ligações à máfia e escândalos de corrupção.
O que mais fascina em “Il Divo” (para além do exercício de estilo, com uma câmara sempre móvel, cenários de luxo, e uma banda sonora contrastante) é o modo como, sem explanar situações concretas, nem mostrar a acção de Andreotti, Sorrentino vai traçando um perfil, através de olhares, gestos, reacções, que são intimistas e únicas, quando à volta o destino de um país se joga. Não vemos nunca Andreotti a discutir política, não o vemos em campanha, ou a discutir temas da agenda partidária ou ministerial. É uma forma de nos dizer que a política conta menos que a dança das cadeiras e posições de influência, mais que os partidos é a chamada «corrente» que decide o status quo, e mais que temas e debates, são as alianças pessoais (como diz Andreotti a dada altura: não existem relações pessoais, tudo é política) que determinam os caminhos a seguir, num estado que era o da rotação das mesmas pessoas para manter um equilíbrio que deixasse o mesmo conjunto de partidos governar, num enorme distanciamento em relação aos eleitores e resultados eleitorais.
Por isso, o que vemos de Andreotti é sua preocupação com o que os outros pensam, com a sua imagem, com as suas motivações, e, acima de tudo com o seu estado de saúde, das enxaquecas aos medicamentos que fazem parte do inventário do palácio. O perfil de Andreotti (que quando lhe é perguntado porque reza aos padres e não a Deus, responde «os padres votam, Deus não») é-nos dado pelas suas réplicas, quase sempre cínicas, de quem se sente acima, com uma verdade só sua, que é uma missão divina que deve levar a cabo contra o que for necessário. O melhor exemplo são os seus aforismos de enorme acutilância: «Porque se é verdade que os cristãos devem dar a outra face, também é verdade que Jesus Cristo, na sua inteligência, faces só nos deu duas», «Todos eles pensam que a verdade é uma coisa justa, mas ela é o fim do mundo. Não podemos permitir o fim do mundo por uma coisa justa. Temos uma obrigação, uma obrigação divina. Temos que amar muito a Deus, para compreender quanto o mal é necessário para o bem. Deus sabe isso, e eu também», «Eu tenho sentido de humor. Também tenho outra coisa: um vasto arquivo. Sempre que o menciono, aqueles que deviam se calar, como por magia, calam-se».
Através dessas tiradas, dos seus tempos e olhares, vamos tentando adivinhar a sua posição perante todas as monstruosas acusações que lhe são feitas. E o resultado é ambíguo. Andreotti tanto se considera culpado como inocente, deixando-nos os factos, como um puzzle para construirmos à nossa vontade, quando tudo aquilo que Sorrentino constrói é o puzzle de uma personalidade.
Pela sua acutilância, pela frontalidade em enfrentar máfia e corrupção, e pela interpretação inesquecível de Toni Servillo, “Il Divo” foi recebido com entusiasmo, valendo a Sorrentino diversos prémios, quer em Itália, quer fora. Consta que o próprio Andreotti terá assistido ao filme, tendo saído a meio, desgostoso com o que via e referindo «no fim serei julgado pelos meus feitos políticos, não por um filme», uma frase que parece tirada do argumento de Sorrentino.
Produção:
Título original: Il divo – La spettacolare vita di Giulio Andreotti; Produção: Indigo Film / Lucky Red / Parco Film / Babe Films / StudioCanal / Arte France Cinéma / Sky Cinema; País: Itália / França; Ano: 2008; Duração: 112 minutos; Distribuição: Lucky Red (Itália), MPI (EUA); Estreia: 23 de Maio de 2008 (Festival de Cannes, França), 28 de Maio de 2008 (Itália), 8 de Outubro de 2009 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Paolo Sorrentino; Produção: Nicola Giuliano, Francesca Cima, Andrea Occhipinti; Co-Produção: Maurizio Coppolecchia, Fabio Conversi; Produtores Associados: Stefano Bonfanti, Gianluigi Gardani; Argumento: Paolo Sorrentino; Música: Teho Teardo; Fotografia: Luca Bigazzi [fotografia digital, cor, com inserts a preto e branco]; Montagem: Cristiano Travaglioli; Design de Produção: Lino Fiorito; Cenários: Alessandra Mura; Figurinos: Daniela Ciancio; Caracterização: Vittorio Sodano; Efeitos Especiais: Leonardo Cruciano; Efeitos Visuais: Nicola Sganga; Direcção de Produção: Viola Prestieri, Gennaro Formisano.
Elenco:
Toni Servillo (Giulio Andreotti), Anna Bonaiuto (Livia Danese), Giulio Bosetti (Eugenio Scalfari), Flavio Bucci (Franco Evangelisti), Carlo Buccirosso (Paolo Cirino Pomicino), Giorgio Colangeli (Salvo Lima), Alberto Cracco (Don Mario), Piera Degli Esposti (Signora Enea), Lorenzo Gioielli (Mino Pecorelli), Paolo Graziosi (Aldo Moro), Gianfelice Imparato (Vincenzo Scotti), Massimo Popolizio (Vittorio Sbardella), Aldo Ralli (Giuseppe Ciarrapico), Giovanni Vettorazzo (Juiz Scarpinato), Fanny Ardant (Esposa do Embaixador Francês).