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Cinema, Cinema japonês, Era dourada do cinema japonês, Hiroshi Hayashi, Jun Ōtomo, Nobuo Nakagawa, Shigeru Amachi, Terror, Utako Mitsuya, Yōichi Numata
Shirō Shimizu (Shigeru Amachi), um jovem estudante, e noivo de Yukiko (Utako Mitsuya) a filha do seu professor Yajima (Akira Nakamura), participa num atropelamento e fuga, com o seu colega Tamura (Yōichi Numata). O facto vai despoletar a sua culpa, e uma série de tragédias, começando no acidente que vitima Yukiko, e uma viagem para casa dos pais, onde se testemunha uma série de pecados e culpas antigas que culminarão numa morte colectiva, e consequente expiação no Inferno.
Análise:
Em 1960, Nobuo Nakagawa era já um nome de vulto no cinema de terror japonês, que ele, em parte, ajudou a criar. Espantará talvez que, depois de um número de filmes baseados no folclore japonês, de espíritos de vingança, baseados na mitologia budista e shintoísta, Nakagawa tenha decidido inovar, fazendo aquele que muitos críticos chamam o mais ocidental dos seus filmes.
A inovação inicia-se desde logo no tempo da narrativa, que deixa de ser um passado medieval de samurais e guerras feudais, para se centrar no momento contemporâneo do Japão do meio do século, a meio caminho entre tradicionalismo e modernismo. Mas a diferença fundamental será o tema, que em “Jigoku” (palavra que significa inferno) não é de vinganças nem de assombrações de além-túmulo, tão comuns no terror japonês desta altura, mas sim, de uma descrição do inferno, com os castigos associados às culpas dos pecados em vida. É nesse sentido que “Jigoku” tem algo de ocidental, aceite como tal pelo seu autor, que buscou inclusivamente inspiração em Dante, podendo nós ainda encontrar comparações com a pintura de Bosch, e descrições bíblicas.
O filme trata da história de Shirō Shimizu (Shigeru Amachi), um jovem estudante, e apaixonado por Yukiko (Utako Mitsuya) a filha do seu professor Yajima (Akira Nakamura). Certa noite, quando regressava de casa da noiva, Shirō e o seu amigo e provocante Tamura (Yōichi Numata) atropelam sem querer Kyōichi (Hiroshi Izumida), um gangster da Yakuza. Shirō quer parar, mas Tamura nega-se, culpando-o por ter escolhido aquela estrada. Sem que saibam, são vistos pela mãe do morto (Kiyoko Tsuji), que planeia a sua vingança.
Transtornado Shirō conta tudo à noiva, e decidem ir à polícia. Mas no caminho, Shirō Yukiko têm um acidente, no qual Yukiko morre. Acusado pelos pais de Yukiko, Shirō busca conforto num bar de striptease, e dorme com Yoko (Akiko Ono), a namorada do homem atropelado, que com a sogra, continua a planear a vingança.
Recebendo a notícia da doença da mãe, Shirō deixa a cidade e vai visitar os pais na aldeia, num retiro para idosos. Aí vê que a mãe Ito (Kimie Tokudaiji) está a morrer, enquanto o seu pai, Gōzō (Hiroshi Hayashi), que dirige o aldeamento, se diverte com a amante Kinuko (Akiko Yamashita). Shirō vai encontrar um ambiente de decadência, onde vê a mãe morrer, tanto pela negligência do marido, como pela incompetência do Dr. Kusama (Tomohiko Ōtani), um dos residentes. Encontra apoio na jovem enfermeira Sachiko (também Utako Mitsuya), parecidíssima com a sua falecida noiva, e filha do pintor amargurado Ensai (Jun Ōtomo), ex-amante de Ito. Chegam depois o casal Yajima, e também Tamura. Este, sempre cínico ri-se da hipocrisia dos presentes, considerando-os todos pecadores, Gōzō pelas amantes, o Dr. Kusama por mortes dos seus pacientes, o professor Yajima por crimes de guerra, Ensai por algo do seu passado, pelo qual é chantageado pelo detective Hariya (Hiroshi Shinguji), e o jornalista Akagawa (Kôichi Miya) por falsas notícias que levaram a suicídios.
O casal Yajima parte e suicida-se, Yoko chega para vingar o namorado, mas em luta com Shirō cai de uma ponte suspensa e morre. O mesmo acontece a Tamura. Por fim, em casa de Gōzō, uns são envenenados com peixe estragado, e outros com vinho envenenado pela mãe do gangster, por fim o fantasma de Tamura alveja Sachiko.
O segundo acto do filme passa-se no inferno, com Shirō a reencontrar Yukiko, que lhe diz ter morrido grávida, e agora a filha, Harumi, navega à deriva no rio. Shirō procura desesperadamente a sua filha, e vai encontrar os vários personagens a sofrer uma série de martírios horrivelmente grotescos. Assistimos a afogamentos, gente a arder em mares de fogo, desmembramentos, mutilações várias, em ciclos infindáveis onde após cada «morte» os mesmos personagens surgem para mais torturas. Shirō, que entretanto descobre que Sachiko é sua irmã, pois ele é filho dos amores ilícitos entre a sua mãe e Ensai, é constantemente tentado por Tamura, personificação do mal. Tem uma última oportunidade de salvar a filha, dada por Lord Enma, o rei do Inferno (Kanjūrō Arashi), numa roda que gira eternamente.
Com duas partes distintas, “Jigoku” destaca-se pela segunda, que nos traz uma representação do Inferno. Este fora já sugerido diversas vezes, quer nas aulas do professor Yajima, quer no quadro de Ensai, quer, claro, no tema da culpa e castigo, transversal a todos os personagens, e exacerbada por um Tamura, que age como uma presença omnisciente, que sem que percebamos porquê, parece conhecer a alma e erros passados de todos os personagens. Depois de uma primeira parte que peca por um excesso de dramatismo, e um desfecho demasiado forçado, onde toda a gente morre quase ao mesmo tempo, percebe-se que o objectivo é descrever o crime e a culpa a ele associada. Temos por isso assassínios premeditados, crimes de negligência e cobardia (desde o atropelamento e fuga, ao uso dos peixes estragados para poupar dinheiro, passando por diagnósticos médicos incompetentes, culpas passadas, adultério e difamação, e finalmente os crimes por envenenamento e suicídio). Todos eles vão fornecer pasto para os castigos variados que testemunharemos no Inferno.
E é nesse segundo acto que o filme ganha vida, com representação sangrenta de mutilações e mortes violentas e sangrentas (desde corpos a serem serrados em partes, fervidos vivos, queimados, quebrados à paulada e descarnados até ao esqueleto, por exemplo). Tudo sugere sofrimento e desespero, que vai desde o vaguear errante das almas penadas, aos diversos afogamentos colectivos, e recriação de mitos gregos (Tântalo e a sede, por exemplo), em imagens que colectiva e individualmente nos trazem uma constante atmosfera de pesadelo, evocativa de Dante ou Bosch.
Nesta corrida infernal, Shirō é (como o fora no primeiro acto) o motor, o palco da luta entre o bem e o mal. Puxado para o Inferno pelo diabólico Tamura que representa a culpa dos erros passados, e para o Céu, por Yukiko e Sachiko (cujo amor parece triunfar na cena final em que as vemos como anjos, em perfeita beatitude esperando por ele), e pelo amor da sua filha que não chegou a nascer. Do lado do mal estão os restantes personagens, condenados à danação eterna, que, como dito atrás, testemunhamos de um modo gráfico que chocou os espectadores do seu tempo.
“Jigoku” seria o último filme da pequena produtora Shintoho, que estava já à beira da falência, o que levou a que os próprios actores contribuíssem com trabalho para construir cenários, e a que o segundo acto surja com uma cenografia muito estilizada, pois foi integramente filmada num enorme estúdio, onde luz, efeitos fotográficos e props limitados serviram para todo criar todo o ambiente. Apesar disso (ou por isso mesmo) a direcção artística tem sido muito elogiada, como um exemplo de como se pode fazer muito com pouco.
O filme tornou-se um fenómeno de culto no ocidente, dando a conhecer o nome de Nobuo Nakagawa nos mercados internacionais, e lançando o interesse do Ocidente sobre o terror japonês.
Produção:
Título original: Jigoku; Produção: Shintoho Film Distribution Committee; País: Japão; Ano: 1960; Duração: 101 minutos; Distribuição: Shintoho Film Distribution Committee; Estreia: 30 de Julho de 1960 (Japão).
Equipa técnica:
Realização: Nobuo Nakagawa; Produção: Mitsugu Okura; Argumento: Nobuo Nakagawa, Ichirō Miyagawa; Música: Michiaki Watanabe; Fotografia: Mamoru Morita [filmado em Shintohoscope, cor por Eastmancolor]; Montagem: Toshio Gotō; Design de Produção: Shôsuke Sasane; Direcção Artística: Haruyasu Kurosawa.
Elenco:
Shigeru Amachi (Shirō Shimizu), Utako Mitsuya (Yukiko / Sachiko), Yōichi Numata (Tamura), Hiroshi Hayashi (Gōzō Shimizu, Pai de Shirō), Jun Ōtomo (Ensai Taniguchi, Pai de Sachiko), Akiko Yamashita (Kinuko), Kiyoko Tsuji (Mãe de Kyōichi), Fumiko Miyata (Mrs. Yajima), Akira Nakamura [como Torahiko Nakamura] (Professor Yajima, Pai de Yukiko), Kimie Tokudaiji (Ito Shimizu, Mãe de Shirō), Akiko Ono (Yoko, Namorada de Kyōichi), Tomohiko Ōtani (Dr. Kusama), Kôichi Miya (Jornalista Akagawa), Sakutarō Yamakawa (Pescador), Rei Ishikawa (Velho Tatuado), Hiroshi Shinguji (Detective Hariya), Hiroshi Izumida (Kyōichi ‘Tiger’ Shiga, Gangster), Kanjūrō Arashi (Lord Enma, Rei do Inferno) [não creditado].