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Aventura, Ópera, Birgit Nordin, Cinema, Cinema sueco, Elisabeth Erikson, Fantasia, Håkan Hagegård, Ingmar Bergman, Irma Urrila, Josef Köstlinger, Mozart, Ragnar Ulfung (Monostatos), Ulrik Cold
Representação da ópera homónima de Wolfgang Amadeus Mozart, mostra-nos a história do príncipe Tamino (Josef Köstlinger), que após ser salvo de um dragão é convencido pela Rainha da Noite (Birgit Nordin) a salvar a sua filha Pamina (Irma Urrila) das mãos do poderoso feiticeiro Sarastro (Ulrik Cold). Apaixonando-se de imediato pelo retrato de Pamina, Tamino leva consigo o tratador de aves da Rainha, Papageno (Håkan Hagegård). Mas ao chegarem ao castelo de Sarastro, Tamino vai perceber que a verdade não é assim tão simples, e o feiticeiro até está do seu lado, caso ele mereça a mão de Tamina, após passar uma série de testes.
Análise:
Em 1791, Wolfgang Amadeus Mozart estreou a sua última ópera, “A Flauta Mágica” (Die Zauberflöte, K. 620), dois meses antes de morrer. Era uma ópera diferente, feita, não para os grandes salões de Viena, mas sim para para os teatros populares. Com libreto do empresário, autor, cantor e actor Emanuel Schikaneder, “A Flauta Mágica” surpreendia pela leveza das melodias vocais (ideais para os teatros cantados de Schikaneder), e pelos temas, que iam da magia ao misticismo, numa espécie de conto de fadas de implicações maçónicas e ocultistas.
Em 1975, confesso admirador de Mozart, Ingmar Bergman realizou uma versão dessa ópera para televisão, produzida pela estação estatal sueca, Sveriges Radio. Não era a primeira vez que Bergman usava a música do compositor austríaco com mote dos seus filmes, e esta ópera em particular fora já parcialmente incorporada no filme “A Hora do Lobo” (Vargtimmen, 1968), na sequência do teatro de fantoches em casa do Barão, com a explicação da espera e morte a tomarem plano de destaque. Afinal, como Bergman confessou nos seus diários, já na na adolescência, quando criava em casa teatros de fantoches, “A Flauta Mágica” era uma das peças que ele ensaiava.
Não deixa de ser um filme diferente na carreira de Bergman, desde logo um dos poucos em que o argumento não é original do realizador, algo que não acontecia nos seus filmes desde “O Olho do Diabo” (Djävulens öga, 1960). Por outro lado é a oportunidade ideal para Bergman unir os mundos que o inspiram, cinema, teatro e música clássica (Bergman já encenara a ópera quando dirigia o Teatro de Malmö, nos anos 60), e é da junção desses elementos, e formas específicas com que se caracterizam, que nasce o filme “A Flauta Mágica” que logo passou da televisão às salas de cinema de todo o mundo.
Após uma abertura em que Bergman filma apenas as expressões faciais do seu público, usando o rosto deliciado de uma menina (Helene Friberg) para pontuar os momentos mais importantes (com uma sucessão de rostos ao ritmo das notas, pela qual passam, entre outros, Erland Josephson, Sven Nykvist e o próprio Bergman), a nossa atenção é virada para o palco (do Teatro Real de Drottningholm, nos arredores de Estocolmo), onde a acção decorrerá.
Bergman sugere-nos que todo filme se passa nesse palco, mas de facto, devido ao seu delicado estado (é o mais antigo teatro do mundo ainda em funcionamento), ele é apenas usado para os planos gerais, que nos lembram, esporadicamente, que é suposto estarmos a assistir a uma apresentação ao vivo numa sala de espectáculos. Essa é parte da ilusão com que Bergman joga durante todo o filme. Após algumas imagens da paisagem exterior ao teatro (os jardins de Drottningholm) e tendo gravado a ópera em estúdio para que os cantores/actores (todos eles profissionais), fizessem playback nas filmagens, Bergman filma maioritariamente em estúdio, usando um argumento em sueco, com algumas alterações em relação ao libreto original.
A história segue, obviamente, a ópera de Mozart, com alteração de algumas cenas, e um interpretar mais dramático dos recitativos originais. Ela mostra-nos as aventuras de Tamino (Josef Köstlinger) e Pamina (Irma Urrila), ele um príncipe aventureiro, ela uma princesa raptada por um feiticeiro. Quando Pamino é salvo de um dragão, a Rainha da Noite (Birgit Nordin), mãe de Pamina, incube-o de procurar a sua filha, por quem ele se apaixona de imediato, com ele segue Papageno (Håkan Hagegård), o tratador das aves do palácio. Chegados ao palácio do feiticeiro Sarastro (Ulrik Cold), Pamino e Papageno são desafiados a suportar vários testes para provarem o seu valor, enquanto Sarastro, que talvez não seja uma figura do mal como anteriormente dito, expulsa o seu servo Monostatos (Ragnar Ulfung) por este ter maltratado Pamina, e a adverte de que a mãe desta é má influência. Tamino passa o teste de silêncio, e depois, já com Pamina os de fogo e água, com a ajuda da flauta mágica, enquanto Papageno encontra Papagena (Elisabeth Erikson) com ajuda dos seus sinos. Dá-se o assalto final da Rainha da Noite, agora ajudada por Monostatos, mas a força da luz de Sarastros vence as trevas, e os casais podem viver felizes.
Com alusões a mitos de morte e ressurreição (nas referências a Isis e Osiris), combates entre luz e trevas, a série de rituais de iniciação, a referência aos elementos clássicos, e a constante caminhada em direcção a uma superior iluminação e conhecimento, é claro que a peça original é uma alegoria que refere ritos de passagem, iniciações rituais, e tudo aquilo que inspira clubes exclusivos, como a maçonaria, à qual tanto Mozart e Schikaneder pertenciam. Não admira que entre busca e redenção, luz e trevas, Bergman, sentisse inspiração na obra de Mozart.
O mais notável nesta versão da obra de Mozart é a forma como Bergman compõe cada plano. Filmando, como se disse antes, em estúdio, Bergman enquadra os personagens, quase sempre em close-ups, para que facilmente percamos a referência do espaço. Aí o cenário muda grandemente, sem que percebamos como, pois sempre que se parte para um plano geral, voltamos a ter a sensação de estarmos no palco, o que sabemos ser impossível, dado o número de mudanças de cenário já sugeridas. São tanto as diferenças de fundo, como de iluminação, como mesmo o facto de vermos os personagens caminharem por mais tempo que o possível em palco, e uma indefinição entre boca de cena e bastidores, que sabemos estarmos perante uma ilusão. Mas o enquadramento em planos fechados (muitas vezes com os actores a cantarem directamente para a câmara) permite manter essa ilusão. Esse mesmo uso do enquadramento permite ainda que, por vezes, surjam cartões com as linhas a ser cantadas (como legendas em rodapé), ou que props cheguem aos personagens, sem que se veja de onde. O lado cinemático vai mais longe nalguns exemplos, como a imagem animada que Tamino vê, quando olha o retrato de Pamina num medalhão.
Com todos estes recursos, Bergman cria uma linguagem única, que confere à sua representação de uma ópera num teatro no cinema, uma grande originalidade. O resultado é um constante diálogo entre teatro e cinema, onde o público (que mais uma vez se recorda, com constantes planos, principalmente o da menina já citada) serve para nos lembrar desse paradoxo entre arte, ilusão e momento real.
Em 2006, Kenneth Branagh, outro homem provindo do teatro, tentaria o mesmo feito, no seu filme “The Magic Flute”.
Produção:
Título original: Trollflöjten [Título inglês: The Magic Flute]; Produção: Sveriges Radio TV2; País: Suécia; Ano: 1975; Duração: 135 minutos; Distribuição: UNITEL; Estreia: 4 de Outubro de 1975 (Suécia, estreia televisiva: 1 de Janeiro de 1975), 29 de Outubro de 1976 (Cinema Londres, Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Ingmar Bergman; Produção: Måns Reuterswärd [não creditado]; Argumento: Ingmar Bergman [a partir do libreto de Emanuel Schikaneder]; Tradução: Alf Henrikson; Música: Wolfgang Amadeus Mozart; Direcção Musical: Eric Ericson; Fotografia: Sven Nykvist [cor por Eastmancolor]; Montagem: Siv Lundgren; Design de Produção: Henny Noremark [não creditado]; Cenários: Anna-Lena Hansen, Emilio Moliner; Figurinos: Karin Erskine, Henny Noremark; Coreografia: Donya Feuer; Direcção de Produção: Måns Reuterswärd [não creditado].
Elenco:
Josef Köstlinger (Tamino), Irma Urrila (Pamina), Håkan Hagegård (Papageno), Elisabeth Erikson (Papagena), Britt-Marie Aruhn (Primeira Dama da Rainha), Kirsten Vaupel (Segunda Dama da Rainha), Birgitta Smiding (Terceira Dama da Rainha), Ulrik Cold (Sarastro), Birgit Nordin (Rainha da Noite), Ragnar Ulfung (Monostatos), Erik Sædén (O Porta-voz), Ulf Johansson (Andra prästen (Segundo Sacerdote), Gösta Prüzelius (Första prästen (Primeiro Sacerdote), Jerker Arvidson (Guarda), Hans Johansson (Guarda), Erland von Heijne (Terceiro Rapaz), Ansgar Krook (Segundo Rapaz), Urban Malmberg (Primeiro Rapaz), Helene Friberg (Rapariga no Público) [não creditada].
Vou assistir a este filme na Galeria 33 aqui em Joinville/SC. Valeu pelo texto elucidativo!!! – marcio “osbourne” silva de almeida/jlle/sc