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Aleksandr Dovjenko, Cinema, Cinema soviético, Fantasia, Les Podorozhnij, Nikolai Nademsky, P. Sklyar Otawa, Revolução russa, Semyon Svashenko
Zvenigora alberga o mito de um tesouro enterrado nessa montanha ucraniana desde o tempo dos vikings e de uma maldição de uma princesa cita (P. Sklyar Otawa). Durante séculos a montanha é guardada por um velho (Nikolai Nademsky) que alerta contra invasores, como os polacos no século XIX, ou os alemães na Primeira Guerra Mundial. Esse velho tem dois netos, o mais velho, Timoshka (Semyon Svashenko), ignora os mitos antigos e vai combater na guerra, tornando-se bolchevique e participando na revolução. O segundo, Pavlo (Les Podorozhnij) fica obcecado com o tesouro, tentando obtê-lo, financiando-se com burlas, e por fim lutando o progresso industrial que ameaça tomar a montanha.
Análise:
Embora não seja a primeira longa-metragem de Aleksandr Dovjenko, “The Enchanted Place” foi aquela que lhe valeu o reconhecimento internacional, e a última em o autor escreveu o argumento em parceria com outros argumentistas (os quais seriam depois retirados dos créditos, dadas as alterações do próprio Dovjenko ao argumento final), e por isso mesmo aquele onde a sua voz artística atingiu a maioridade.
Típico de Dovjenko, num momento em que a cinematografia soviética era fortemente dominada pela propaganda política, e pelo formalismo estético que vinha das teorias de montagem de Kuleshov, desenvolvidas e consagradas na obra de Dziga Vertov e Sergei M. Eisenstein, é o seu olhar para a sua natal Ucrânia, como testemunha privilegiada de tudo o que (de positivo ou negativo) a transformação política e social daqueles tempos trazia. É a Ucrânia, o seu povo, história, luta e sofrimento o cerne da sua filmografia de Dovjenko.
Tal acontece na história mitológica de Zvenigora, segundo a qual, em tempos idos, aquele foi um local sagrado, onde acabou por ser escondido um grande tesouro, que é hoje parte da grandeza espiritual da Ucrânia. Esse tesouro é desde então guardado por um velho (Nikolai Nademsky) que vemos a dada altura alertar os cossacos da presença de polacos que tentam delapidar a montanha. Os anos passam, e chega a Primeira Guerra Mundial. Nessa altura o velho tem dois netos. O mais velho, Timoshka (Semyon Svashenko), vai combater, tornando-se bolchevique e participando na revolução. O segundo, Pavlo (Les Podorozhnij) ouve as superstições do avô, e fica obcecado com o tesouro, tentando obtê-lo diversas vezes, nem que para isso tenha que se financiar burlando os salões decadentes da Europa, e arriscar a vida contra o progresso industrial que ameaça tomar a montanha.
O que mais espantou no momento em que Dovjenko propôs este seu novo filme, foi o quão ele parecia afastar-se, quer da estética, quer da retórica dominantes no cinema soviético coevo. Em primeiro lugar, grande parte do filme não faz uso da montagem rápida, fortemente simbolista, e de difícil apreensão, em voga no seu tempo, preferindo filmar de um modo lírico a paisagem idílica da sua Ucrânia natal. Há mesmo uma clara diferença entre as sequências rurais, e aquelas que dizem respeito à evolução e progresso, estas sim mais rápidas e onde o simbolismo volta a estar presente (note-se, por exemplo, o paralelo dos montes de feno no campo, substituídos por pilhas de espingardas). Em segundo lugar há uma certa ambiguidade no tema, com Dovjenko a ter sido acusado de cedência ao nacionalismo e folclore de gostos burgueses, na história mitológica do tesouro da montanha.
A um olhar cuidado, e mais distante, estas ambiguidades não chocam, e são consentâneas com a obra de Dovjenko, onde estão sempre presentes. O próprio falaria num certo gosto pela natureza, pela sua redescoberta, a qual só teria tido o devido valor com a revolução russa, por mais paradoxal que isso possa hoje parecer-nos. No seu filme, Dovjenko parte de um conto mitológico, insere-lhe folclore local, transversal aos tempos, e vê nele uma espécie de reserva moral de uma região. Mostra-nos depois atitudes diferentes, a moderna, do primeiro neto, e a tradicionalista do segundo. Onde o primeiro, Timoshka, é íntegro, corajoso, capaz de se sacrificar (ou de sacrificar os outros, como faz matando a própria mulher, a pedido desta, para continuar a sua luta sem entraves), e um paladino do progresso (exemplificado pelo avanço do caminho-de-ferro), o segundo, Pavlo, é o oposto, supersticioso, fortemente religioso, apegado ao folclore local, mas também trapaceiro e egoísta, procurando lucro pessoal acima de tudo. Notem-se as próprias diferenças físicas dos dois irmãos. O primeiro elegante e escultural, o segundo sinuoso e encurvado.
Nesta dicotomia parece estar uma crítica de personalidade, com o homem moderno, voluntarioso a ser elogiado em detrimento da mesquinhez do homem tradicionalista. Vemos então um outro elogio, o da industrialização, com tudo o que de moderno ela traz a um país, e cuja descrição toma papel essencial do filme, mais uma vez colidindo com o tal mito de Zvenigora. Simbolicamente esse progresso vai causar a morte de Pavlo (isto é dos velhos e retrógradas modos de ser), ao mesmo tempo que cativa e conquista o velho guardião, ele próprio símbolo da milenar Ucrânia, que assim aceitava o novo mundo, percebendo que o verdadeiro tesouro ucraniano é o seu povo em transformação.
Tudo isto é filmado com uma enorme diversidade de recursos. Dovjenko usa os exteriores para nos dar uma Ucrânia poética, ainda assim realista, nos comportamentos e existências dos seus camponeses. A isto junta a narrativa de guerra, o documento de progresso e indústria (este sim filmado ao modo da teoria de montagem de então). Entre as suas técnicas estão as dissolvências, e as múltiplas exposições que ajudam a criar os ambientes irreais das sequências mitológicas, numa construção narrativa complexa e sempre surpreendente, numa estrutura que, ao gosto modernista, rejeita as convenções narrativas literárias.
Produção:
Título original: Zvenigora / Звeнигopа; Produção: VUFKU; País: URSS; Ano: 1928; Duração: 92 minutos; Distribuição: Mosfilm; Estreia: 8 de Maio de 1928 (URSS).
Equipa técnica:
Realização: Aleksandr Dovjenko; Argumento: Aleksandr Dovjenko, Mikhail Ioganson Yuri Tyutyunik [como Yurtik]; Fotografia: Boris Zavelev [preto e branco]; Montagem: Aleksandr Dovjenko; Direcção Artística: Vasili Krichevsky; Caracterização: Schercherbina.
Elenco:
Nikolai Nademsky (Velho / General), Semyon Svashenko (Timoshka, Primeiro Neto), Les Podorozhnij (Pavlo, Segundo Neto), P. Sklyar Otawa (Okasana, Princesa da Montanha), Georgi Astafyev (Líder Cita), Vladimir Uralsky (Camponês), I. Selyuk (Ataman), L. Barné (Monge), L. Parshina (Mulher de Timoshka), A. Simonov (Oficial Cossaco).