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Birger Malmsten, Cinema, Cinema sueco, Drama, Gunnel Lindblom, Håkan Jahnberg, Ingmar Bergman, Ingrid Thulin, Jörgen Lindström
Duas irmãs, Ester (Ingrid Thulin) e Anna (Gunnel Lindblom), viajam juntamente com Johan (Jörgen Lindström), o filho de Anna, de 10 anos. Ester é uma tradutora em trabalho, mas a sua doença leva a que o trio páre numa cidade estrangeira para que ela recupere. Hospedadas num hotel, a tensão entre as mulheres começa a toma conta delas, Ester sentindo-se só, incapaz de comunicar o seu amor a uma Anna que procura fora contactos sexuais passageiros, e formas de humilhar e se livrar da irmã.
Análise:
“O Silêncio”, a que Ingmar Bergman chamou inicialmente “O Silêncio de Deus”, é o terceiro filme da trilogia que ganhou esse mesmo nome, e que se seguiu a “Em Busca da Verdade” (Såsom i en spegel, 1961) e “Luz de Inverno” (Nattvardsgästerna, 1963). Segundo o realizador, o filme nasceu sob inspiração da sua peça de teatro para rádio “Staden”, a partir do conto de Sigfrid Siwertz “The Dark Goddess of Victory”, do concerto para orquestra de Béla Bartók e um sonho recorrente sobre uma grande cidade.
Tal como acontecera nos dois anteriores filmes da trilogia, o motivo de Bergman, mais que um ensaio religioso, é o tema da solidão humana, as barreiras na ligação entre pessoas, e o silêncio a que isso as vota. Aqui temos o caso de duas irmãs numa relação doentia, de dependência, inveja e raiva, em que lutam por um pouco de afecto que não sabem como obter nem comunicar, e que é testemunhado (e disputado) pelo pequeno filho de uma delas.
Elas são Ester e Anna, interpretadas pelas actrizes habituais de Bergman, a fria Ingrid Thulin e a visceral Gunnel Lindblom, respectivamente, que vemos numa viagem de comboio, num qualquer país da Europa, cuja língua nenhuma delas fala. Com elas viaja Johan (Jörgen Lindström), o filho de Anna, de 10 anos. O motivo da viagem parece ser o trabalho de Ester, uma tradutora que aparenta estar doente (além de cada vez mais dependente de bebida e tabaco), pelo que é assistida pela irmã. Uma paragem num hotel, onde as irmãs (órfãs de pai, que nomeiam várias vezes, como se a morte de pai significasse aqui a morte de Deus de filmes anteriores, numa repetição dessa comparação entre as duas figuras) dividem um quarto que leva a que as tensões se acumulem. Ester ressente o facto de não se conseguir dar emocionalmente, a ponto de que nem o sobrinho aceite uma carícia sua. Já Anna ressente a vida estável da irmã, e o facto de a servir. Para a humilhar vai inventando histórias de conquistas fortuitas, acabando mesmo por se dar a um encontro sexual fortuito (Birger Malmsteen, num fugaz regresso ao universo bergmaniano, depois de tantos filmes como protagonista), que faz questão de deixar a irmã ver. Enquanto isso o pequeno Johan vagueia pelos corredores do hotel, acompanhando o velho paquete (Håkan Jahnberg), convivendo com uma troupe de anões espanhóis, e espreitando as escapadelas da mãe.
A língua estranha (inventada por Bergman) da fictícia cidade Timoka funciona como um marco de maior isolamento (repare-se que o personagem de Birger Malmsten não diz uma palavra durante os seus encontros sexuais com Anna). O olhar da criança é o motor em termos narrativos, sendo as suas movimentações que definem momentos e desbloqueamentos (as saídas de Anna, as carências de Ester). As suas deambulações pelos corredores, entradas, saídas, espreitadelas e recontros com personagens estranhos (um paquete que chora ao mostrar-lhe fotos, sem que entendam uma palavra um do outro, um estranho grupo de anões-actores) trazem a tudo um carácter onírico, irreal, como se testemunhássemos uma história que é apenas simbólica.
E apesar do seu realismo e tensão emocional, há algo de simbólico na história das duas irmãs, que podem ser vistas como duas faces da mesma moeda (note-se como Bergman as enquadra como se uma face de cada uma completasse a outra). Ester é a racional, enredada numa teia sem emoções, rejeitada pela irmã e pelo sobrinho, sofrendo pela necessidade de se ligar a alguém. Anna, um animal emocional, cuja nudez vemos repetidamente, que dorme nua com o filho, que procura sexo fácil na rua, que sente prazer na chuva que lhe cai sobre o corpo (por contraste com a irmã para quem o corpo é apenas sinal de doença), sente-se julgada, presa pela irmã, que assim humilha e da qual precisa de se libertar. Pelo meio pressente-se uma ligação passada muito forte, um amor não concretizado, um desejo mútuo que levou os críticos a verem incesto na relação.
Mais que tudo, temos uma história de afastamentos, barreiras entre pessoas que se deviam amar, incapacidades de comunicação (com o tal piscar de olhos da língua imperceptível), em duas mulheres que podiam ser simplesmente duas faces diferentes e em conflito de uma mesma pessoa.
Ao libertar-se de uma narrativa convencional, como já fizera em filmes como “O Sétimo Selo” (Det sjunde inseglet, 1957) e “Morangos Silvestres” (Smultronstället, 1957), Bergman continuava a dar passos para um cinema mais modernista, mais pessoal, de tensões psicológicas marcadas por momentos interiores dos seus personagens. São os olhares intensos dos protagonistas que marcam momentos, numa história que se desenrola mercê de uma câmara contemplativa, em detrimento de convencionais artifícios narrativos, e deixando quase de lado os diálogos. “O Silêncio” tem sido comparado a outros marcos do cinema europeu da mesma década, como “A Aventura” (L’avventura, 1960) de Michelangelo Antonioni e “O Último Ano em Marienbad” (L’année dernière à Marienbad, 1961) de Alain Resnais. Tem ainda o mérito de ter sido o vencedor, em 1964, nos primeiros prémios Guldbaggen (Escaravelhos de Ouro, principais prémios do cinema sueco), nas categorias de Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Actriz (Thulin).
O filme (que termina com a palavra «alma», mas é principalmente um filme de corpos) foi principalmente controverso pelo carácter explícito das cenas sexuais, incluindo masturbação e linguagem explícita, tanto quanto pela sugestão da relação incestuosa entre as duas irmãs. Tal levou-o mesmo a ser proibido nalguns países, enquanto nos Estados Unidos chegou a ser, para desgosto do autor, etiquetado de filme pornográfico.
Produção:
Título original: Tystnaden; Produção: Svensk Filmindustri (SF); País: Suécia; Ano: 1963; Duração: 95 minutos; Distribuição: Janus Films (EUA), Atlas Film (RFA); Estreia: 23 de Setembro de 1963 (Suécia), 6 de Março de 1975 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Ingmar Bergman; Produção: Allan Ekelund [não creditado]; Argumento: Ingmar Bergman; Música: Ivan Renliden [não creditado]; Fotografia: Sven Nykvist [preto e branco]; Montagem: Ulla Ryghe; Design de Produção: P. A. Lundgren; Figurinos: Marik Vos-Lundh, Bertha Sånnell [não creditada]; Caracterização: Börje Lundh; Efeitos Especiais: Evald Andersson.
Elenco:
Ingrid Thulin (Ester), Gunnel Lindblom (Anna), Birger Malmsten (O Barman), Håkan Jahnberg (O Paquete), Jörgen Lindström (Johan).