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Cinema, Cinema sueco, Drama, Gunnar Björnstrand, Harriet Andersson, Ingmar Bergman, Lars Passgård, Max Von Sydow
David (Gunnar Björnstrand) é um escritor famoso, sempre longe da família, que vive um curto interlúdio de repouco junto dos seus. Estes são o filho menor Minus (Lars Passgård), constantemente a procurar o reconhecimento do pai, a filha Karin (Harriet Andersson), recentemente saída de uma instituição psiquiátrica, e o genro e médico dela, Martin (Max von Sydow), figura paternal, preocupado com a regressão do estado de Karin. Numa noite de confrontos e revelações, a deterioração da condição de Karin vai despoletar sentimentos, dúvidas e auto-análises entre o quarteto.
Análise:
Depois da comédia leve de tons metafísicos, que fora “O Olho do Diabo” (Djävulens öga, 1960), Ingmar Bergman iniciaria uma trilogia muito pessoal com “Em Busca da Verdade”, o primeiro filme rodado na sua propriedade na ilha de Fårö (junto a Gotland, a maior ilha da Suécia no Báltico). A essa trilogia, Bergman daria nomes de capítulos, este intitulado “Certeza Cumprida”, o segundo “Luz de Inverno” (Nattvardsgästerna, 1963) ganhava o subtítulo de “Certeza Desmascarada”, e o terceiro, “O Silêncio” (Tystnaden, 1963), encerrando a trilogia como “A Impresão Negativa”.
O cenário, isolado, banhado pela paisagem marítima, remete-nos para outras obras de isolamento dos protagonistas, como “Um Verão de Amor” (Sommarlek, 1951) e “Mónica e o Desejo” (Sommaren med Monika, 1953), onde um interlúdio temporal (um Verão) nos transporta para uma realidade diferente, mais interior, mais psicológica. A estes confinamentos junta-se o temporal (tudo se passa em 24 horas) e o pessoal, de um elenco curto, apenas quatro actores, três deles, regulares actores de Bergman, Harriet Andersson, Gunnar Björnstrand e Max von Sydow, e o quarto, Lars Passgård, um estreante no cinema. O resultado é um filme que parece uma peça de teatro, pontuada com a música pungente de Johann Sebastian Bach (Sarabanda da Suíte para Violoncelo No. 2 em Ré menor, BWV 1008), e que Bergman dedicou explicitamente à sua então esposa, a pianista Käbi Laretei.
A partir da citação da Bíblia «Porque agora vemos todas estas verdades como através de um espelho, em enigma» (Epístola de Paulo aos Coríntios, 13:12), Bergman escreveu um argumento que aposta no confronto de quatro personagens, como espelho uns dos outros, naquilo que para ele é a única prova da existência do divino, que ele encontra no calor humano. É uma nova abordagem de um tema em si clássico, que já se encontrava, por exemplo nas buscas vãs do cavaleiro templário de “O Sétimo Selo” (Det sjunde inseglet, 1957), cuja resposta fora simplesmente o silêncio, o qual seria inclusivamente o tema do seu futuro filme “O Silêncio” (Tystnaden, 1963).
“Em Busca da Verdade” mostra-nos a família de David (Gunnar Björnstrand), um famoso escritor, que vive em constantes viagens, procurando encontrar-se nos livros que escreve, que embora sejam best-sellers, lhe desagradam. David reúne na sua casa de férias a filha Karin (Harriet Andersson), uma jovem em recuperação de crises emocionais que a levaram ao internamento, o marido e médico desta, o amargurado David (Max von Sydow), e o seu filho mais jovem, Minus (Lars Passgård), um rapaz cujo grande desgosto é não ter a atenção do pai.
O enredo avança à medida que a situação frágil de Karin se vai revelando. Fugaz ao marido, provocadora em relação ao irmão (sugere-se o incesto, tal como se sugere uma homossexualidade latente de Minus), Karin vai denotando mais e mais sintomas da esquizofrenia que não foi afinal curada no seu internamento. De tal está consciente Martin, que acusa David de egocentrismo e pouca atenção aos filhos. Aos poucos Karin vai vivendo mais episódios da sua condição, falando das vozes que a guiam e a forçam a fazer coisas más (o incesto?). A sua fixação centra-se num sótão vazio, cujo papel de parede vai caindo, e uma racha na parede a prende. Vindas dela, Karin ouve vozes que acredita ser um chamamento de Deus. Da porta que bate quando o helicóptero chega do hospital para a levar, até à aranha que deixa a dita racha, Karin vê em tudo sinais. No final acredita que Deus se lhe revelou como uma aranha, e aceita o internamento.
Resta a David e ao filho Minus perceberem que tudo o que têm da presença divina é o amor uns dos outros, que os rodeia e lhes dá esperança. O filme termina com o murmúrio feliz de Minus “o pai falou comigo”, dito com a reverência religiosa de quem teve uma epifania, e que vem misturar ainda mais os conceitos família-religião.
Num drama familiar que tem tudo para parecer uma peça de teatro, Ingmar Bergman embrenha-se em paisagens pessoais quase herméticas. Se por um lado a sua relação com o transcendente vinha já sendo explorada em filmes anteriores, é a tortuosa dinâmica familiar que mais caracteriza “Em Busca da Verdade”, numa sequência de momentos dolorosos e realidades difíceis de conjugar para os diversos elementos do claustrofóbico quarteto. Tudo com o tratamento bergmaniano de personagens trágicas, numa impassividade que as oprime, tolhidas por questões filosóficas e religiosas, e desencontros humanos.
Trata-se de um filme de desencontros, senão veja-se. A família ressente as viagens de David, que vai prometendo ficar com os filhos, para logo se tornar a ausentar. A sua inépcia como pai fica demonstrada nas prendas que traz (a sua consciência disso leva-o a retirar-se para chorar sozinho no momento de serem abertas). Minus tenta ligar-se ao pai, cuja aprovação procura, escrevendo e encenando uma curta peça de teatro que o pai vê como um ataque à sua pessoa. David vê os seus avanços sexuais constantemente rejeitados por Karin. E esta percebe que para o pai é objecto de uma curiosidade mórbida sobre uma doença que ele poderá explorar em livro.
É, para Bergman, um drama de câmara. Câmara no sentido de espaço conciso (quarto, sala), presente nas peças de Strindberg, mas também como sugerido pela música de câmara de Bach que ilustra o filme, e onde os quatro actores formam um quarteto de cordas, de contínuos diálogos, repetições, fugas e harmonias. A destacar fica ainda o trabalho de câmara de Sven Nyquist, no seu uso subtil da sombra, ângulos oblíquos, enquadramentos complexos, e suaves panorâmicas.
Com a esquizofrenia de Karin a ganhar preponderância durante o filme (Harriet Andersson domina o filme com brilhantismo), confundindo-se com fervor religioso (veja-se a cena em que Karin tem uma experiência aparentemente orgásmica numa das suas entregas ao seu delírio, sozinha no sótão) “Em Busca da Verdade” torna-se uma obra densamente negra, onde os isolamentos individuais reflectem o isolamento humano perante aquilo que não compreendemos, num cenário de cantos escuros de uma velha casa, cujo interior e exterior chegam a sugerir uma atmosfera gótica (onde não faltam tempestades e ruínas). Essa busca, tanto de calor humano, uns nos outros, como de algo que tudo justifique e que dê sentido à vida, torna-se o nominal espelho (no original o título significa «Como num espelho») em que todos procuram reflexão uns nos outros. Ainda assim, apesar do seu tema negro, e aura de tragédia que percorre toda a obra, fica no ar uma onda de optimismo na conclusão final de David.
Recebido com alguma desconfiança internacionalmente, “Em Busca da Verdade”, que foi um dos seus poucos filmes que o próprio Bergman considerava perfeitos, venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, pela segunda vez consecutiva para Bergman depois de “A Fonte da Virgem” (Jungfrukällan, 1960), tendo ainda sido nomeado para Melhor Argumento. O filme recebeu ainda duas nomeações aos BAFTA e concorreu ao Urso de Ouro do Festival de Berlim.
Produção:
Título original: Såsom i en spegel [Título inglês: Through a Glass Darkly]; Produção: Svensk Filmindustri (SF); País: Suécia; Ano: 1961; Duração: 90 minutos; Distribuição: Svensk Filmindustri (SF) (Suécia), Janus Films (EUA); Estreia: 16 de Outubro de 1961 (Suécia), 13 de Maio de 1965 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Ingmar Bergman; Produção: Allan Ekelund; Argumento: Ingmar Bergman; Música: Johann Sebastian Bach, Erik Nordgren [não creditado]; Fotografia: Sven Nykvist [preto e branco]; Montagem: Ulla Ryghe; Design de Produção: P. A. Lundgren; Figurinos: Mago; Caracterização: Börje Lundh; Efeitos Especiais: Evald Andersson.
Elenco:
Harriet Andersson (Karin), Gunnar Björnstrand (David), Max von Sydow (Martin), Lars Passgård (Minus).