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SátántangóNuma quinta em decadência, na Hungria rural dos anos 1990, os aldeães discutem o seu futuro, e o que fazer com o dinheiro ao seu dispor. Enquanto alguns pensam fugir com o dinheiro que deveria pertencer a todo o grupo, a chegada de Irimiás (Mihály Vig), que todos parecem temer, vem trazer novidades. Irimiás convence todos a darem-lhe o seu dinheiro, para que ele inicie outro empreendimento, onde os recolocará. Mas o que ninguém sabe é que tudo isto é uma burla de Irimiás, combinada com as autoridades, para se livrarem daqueles camponeses, e ficarem com o seu dinheiro.

Análise:

Em 1994, Béla Tarr era já um realizador com uma carreira firme na Hungria, e várias longas-metragens no seu curriculum, mas seria “Sátántangó”, uma adaptação da obra homónima de László Krasznahorkai, que o tornaria notado internacionalmente. O filme terá levado cerca de sete anos a preparar, e dois de filmagens, transpondo para o ecrã o universo de tons negros e apocalípticos de uma comunidade rural marcada pelo pessimismo e decadência, como alegoria à situação de incerteza que a Hungria vivia no final do século XX.

“Sátántangó” divide-se em doze partes, não necessariamente por ordem cronológica, já que Tarr afirmou querer espelhar os movimentos do tango, com passos à frente e atrás, retratando uma comunidade rural que se desfaz, com parte dos aldeães a deixar a quinta onde trabalham para procurar futuro noutras partes. Os movimentos são:

1) A hír, hogy jönnek [As notícias são de que eles estão a chegar]: Futaki (Miklós B. Székely) tem uma relação ilícita com a Senhora Schmidt (Éva Almássy Albert), e escondido em sua casa, ouve os planos do Sr. Schmidt (László Lugossy) de fugir com parte do dinheiro dos trabalhadores da quinta. Futaki mostra-se então a Schmidt, que o faz parte do golpe, enquanto são espiados pelo Doutor (Peter Berling), um homem idoso que bebe enquanto escreve tudo no seu diário. Para os dois homens, a sombra é o falado regresso Irimiás, um ex-trabalhador, da quinta, que se pensa ter morrido.

2) Feltámadunk [Ressuscitámos]: Irimiás (Mihály Vig) e o seu amigo Petrina (Putyi Horváth) procuram o Capitão, para combinarem com ele uma forma de manipular a pequena comunidade.

3) Valamit tudni [Saber algo]: Em sua casa, o Doutor escreve, até ver que está sem bebida. Sem ninguém consigo, tem de se aventurar no mau tempo para comprar bebida. Ao chegar à taberna da vila é abordado pela pequena Estike (Erika Bók), que ele repudia. No regresso cai na lama, e é encontrado na manhã seguinte por alguém que passa numa carroça e o leva ao hospital.

4) A pók dolga I. [O trabalho da aranha I]: Na taberna, chega a informação de que Irimiás está de volta.

5) Felfeslik [Chega descosido]: Na manhã anterior, Estike e o irmão mais velho, Sanyi (András Bodnár), vão plantar uma árvore de dinheiro, enterrando dinheiro de ambos. Estike, ansiosa, tortura e envenena o gato, e quando procura o dinheiro percebe que o irmão o roubou. Vai até à taberna, onde encontra os aldeães a dançar, e é abordada agressivamente pelo Doutor, foge dele, e envenena-se.

6) A pók dolga II (Ördögcsecs, sátántangó) [O trabalho da aranha II (A teta do Diabo, Tango de Satanás]: Reunindo-se na taberna, os aldeãos discutem, deixando que a bebida e a música os conduza numa dança pela noite dentro, enquanto Estike observa do exterior.

7) Irimiás beszédet mond [Irimiás faz um discurso]: Durante o funeral de Estike, todos estão reunidos, quando Irimiás chega. Num emotivo discurso, convence-os a darem-lhe o seu dinheiro para um empreendimento que recolocará todos em melhores condições.

8) A távlat, ha szemből [A perspectiva da frente]: Depois disso e de Irimiás dormir com a Sra. Schmidt, aquele divide a comunidade em grupos, e todos preparam a partida, levando o que podem, e abandonando o que não podem levar. Terminam a dormir numa casa abandonada, entregues aos seus sonhos e pesadelos.

9) Mennybe menni? Lázálmodni? [Indo para o Céu? Tendo pesadelos?]: No dia seguinte, Irimiás diz aos aldeães que o plano para estabelecer nova quinta está adiado. Vai à cidade e escreve às autoridades informando dos acontecimentos.

10) A távlat, ha hátulról [A perspectiva da rectaguarda]: Irimiás aconselha os aldeães a procurar novos trabalhos. É confrontado por Schmidt e Kráner (János Derzsi) que exigem o dinheiro de volta, mas volta a convencer todos a confiarem-lhe o seu dinheiro. Viajam depois em camiões para empregos diferentes, excepto Futaki, que vai por conta própria.

11) Csak a gond, a munka [Apenas problemas e trabalho]: Recebendo as cartas de Irimiás sobre as características dos aldeães, os oficiais reescrevem-nas de forma mais polida, notando o extremo cinismo de Irimiás.

12) A kör bezárul [O círculo fecha]: De volta a casa, o Doutor volta aos seus escritos, sem saber o que aconteceu à comunidade. Buscando nos arredores encontra um louco a tocar o sino da igreja, e foge dele.

Com uma história que decorre lentamente, dir-se-ia que quase sem acontecimentos, Béla Tarr concentra-se sobretudo na criação de ambientes que melhor denotem a frieza de uma existência, o pessimismo na falta de opções de uma comunidade, e os parcos modos com que esta gere o seu quotidiano. Usa, para tal, fortes motivos visuais e estilísticos, como a escuridão, os cenários decadentes e chuva e desolação quase constantes, a aridez das paisagens de campos abertos, e a lama omnipresente. A própria fotografia, a preto e branco, contribui para essa grande desolação de cinzentos que tornam cada imagem mais fria e evocativa de pobreza. A isto se alia uma banda sonora nostálgica (e segundo Tarr carnavalesca), feita de temas de acordeão, escrita pelo protagonista Mihály Vig, que também contribuiu para o argumento.

Mas é nas opções da sua câmara que Béla Tarr mais se distingue. Os seus planos são geralmente longos, muitas vezes chegando aos 10 minutos, mesmo quando nada está a acontecer. O uso de movimento é mínimo, com planos fixos, ou lentos movimentos panorâmicos, que tanto podem enquadrar um plano vazio de onde alguns personagens surgirão vagarosamente, como podem apenas errar pela paisagem, ou enquadrar um quarto, no qual os personagens se movem, sem qualquer relação com a câmara, surgindo dentro ou fora de campo quase que aleatoriamente.

Há como que uma intenção propositada de descorrelacionar actores e filmagem, todos se comportando como se não houvesse câmaras, e estas filmando indiscriminadamente como se não houvesse necessidade de montagem (veja-se a sequência inicial de 8 minutos que simplesmente acompanha o movimento de vacas que saem de um estábulo), contribuindo para um realismo que chega a chocar.

Tudo isto confere rudez aos personagens e ao tema, que é da perda de esperança, numa contínua decadência sem solução, às mãos de oportunistas em conluio com as autoridades, como falsos profetas responsáveis pela exploração dos inocentes.

Béla Tarr, com este modo de filmar, discursos elusivos, e a narração off em jeito filosófico de um narrador omnisciente (voz de Mihály Ráday) transforma cada momento numa sequência poética de imagens fortes. Do realismo social a um estranho e quase velado misticismo, de um existencialismo cru a uma contemplação que faz o espectador parte dos seus planos, tem recebido rasgados elogios da parte da crítica, e comparações à obra de Andrei Tarkovsky.

Produção:

Título original: Sátántangó; Produção: Mozgókép Innovációs Társulás és Alapítvány / Von Vietinghoff Filmproduktion (VVF) / Vega Film / Magyar Televízió / Télévision Suisse-Romande (TSR); País: Hungria / Alemanha / Suíça; Ano: 1994; Duração: 422 minutos; Estreia: 28 de Abril de 1994 (Hungria).

Equipa técnica:

Realização: Béla Tarr; Produção: György Fehér, Joachim von Vietinghoff, Ruth Waldburger; Argumento: Béla Tarr, László Krasznahorkai; História: Mihály Vig, Péter Dobai, Barna Mihók [baseada no livro homónimo de László Krasznahorkai]; Música: Mihály Vig; Fotografia: Gábor Medvigy [preto e branco]; Montagem: Ágnes Hranitzky; Design de Produção: Sándor Kállay; Cenários: Sándor Katona, Béla Zsolt Tóth; Figurinos: János Breckl, Gyula Pauer; Efeitos Especiais: Péter Pásztorfi.

Elenco:

Mihály Vig (Irimiás), Putyi Horváth (Petrina), László feLugossy (Schmidt), Éva Almássy Albert (Sra. Schmidt), János Derzsi (Kráner), Irén Szajki (Sra. Kráner), Alfréd Járai (Halics), Miklós B. Székely (Futaki), Erzsébet Gaál (Sra. Halics), György Barkó (Iskolaigazgató), Zoltán Kamondi (Kocsmáros), Barna Mihók (Kerekes), Péter Dobai (Százados), András Bodnár (Horgos Sanyi), Erika Bók (Estike), Peter Berling (Orvos, com voz de Ferenc Kállai), Mihály Ráday (voz do Narrador).

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