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Cinema, Cinema alemão, Drama, Espionagem, Florian Henckel von Donnersmarck, Guerra Fria, Hans-Uwe Bauer, Herbert Knaup, Martina Gedeck, Sebastian Koch, Thomas Thieme, Thriller, Ulrich Mühe, Ulrich Tukur, Volkmar Kleinert
Gerd Wiesler (Ulrich Mühe) é um oficial da Stasi (polícia secreta da República Democrática Alemã), especialista em interrogações, no que é tão implacável quanto é rigoroso na sua devoção ao regime comunista. Um dia Wiesler é chamado pelo seu chefe, Anton Grubitz (Ulrich Tukur), para supervisionar a vigilância ao dramaturgo Georg Dreyman (Sebastian Koch), que embora de folha impecável, se suspeita possa ter ligações com dissidentes. Wiesler mantém vigilância escutando tudo o que se passa na casa de Dreyman e da sua amante, a actriz Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck). Aos poucos Wiesler vai sentir a sua humanidade e admiração pelo casal passarem à frente do rigor da vigilância.
Análise:
Florian Henckel von Donnersmarck realizou a sua primeira longa-metragem aos 33 anos. Versado em literatura russa, filosofia, política e economia, von Donnersmarck dedicou-se depois ao cinema, começando com algumas curtas-metragens que não saíram do circuito dos festivais. Foi, por isso, com certo estrondo, que o seu filme “As Vidas dos Outros” tomou a Europa e os Estados Unidos de assalto, como mostra o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, recebido.
Tendo trabalhado no argumento durante três anos, Florian Henckel von Donnersmarck conta-nos uma história passada na Alemanha Oriental, poucos anos antes da quera do Muro de Berlim. É a história de Gerd Wiesler (Ulrich Mühe) um oficial da Stasi (polícia secreta da República Democrática Alemã – RDA), especialista em interrogações a prisioneiros, o que ensina aos jovens recrutas. Wiesler é um homem austero, sem qualquer sentido de humor, tão rigoroso no seu ofício, quanto o é na sua devoção ao regime comunista. Um dia Wiesler é chamado pelo seu chefe, Anton Grubitz (Ulrich Tukur), para montar vigilância à casa de Georg Dreyman (Sebastian Koch), um dramaturgo de registo impecável, mas que se suspeita possa ter ligações com dissidentes. Na verdade, Wiesler vem a compreender que não se trata de mais do que uma rivalidade política, pois não só o ministro da cultura Bruno Hempf (Thomas Thieme) teme ses substituído por Dreyman, como está a chantagear a amante deste, a actriz Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck) em troca de favores sexuais. Explicado tudo isto a Grubitz este diverte-se a recolher informações tanto sobre Dreyman como sobre Hempf, que lhe poderão ser úteis no futuro.
Mas ouvir todos os dias a intimidade, as preocupações e sonhos de Georg Dreyman e Christa-Maria leva Wiesler a ganhar empatia por eles. Aos poucos a tentação de os ajudar, e de perdoar alguns desvios políticos (fechando um olho aqui e ali) vão tomando conta dele. Fá-lo ao levar Dreyman a descer as escadas quando Christa-Maria saía do carro do ministro. Fá-lo ao conversar com Christa-Maria para lhe dar a coragem de acreditar em si e dizer não ao ministro chantagista, e fá-lo sobretudo quando esconde o facto de Georg Dreyman estar a trabalhar num artigo político para o ocidental Der Spiegel.
Só que os acontecimentos tornam-se demasiado importantes e evidentes para mesmo Wiesler os conseguir esconder, e quando Christa-Maria é trazida a depor sobre o envolvimento de Georg Dreyman no artigo, é o próprio Wiesler quem tem que a interrogar. Não lhe resta senão envolver-se destruindo as provas (a máquina de escrever ocidental), não evitando a culpa sentida por Christa-Maria, nem a sua demoção para um posto inferior. Só anos mais tarde, depois da queda do Muro, Georg Dreyman vai perceber que teve um inusitado anjo da guarda.
Dedicando-se a contar uma parte da história da RDA, do ponto de vista da vigilância da polícia secreta, a temível Stasi, von Donnersmarck constrói um filme que é parte documento, parte drama humano. Partindo do personagem de Capitão (em alemão Hauptmann) Gerd Wiesler (código HGW XX/7), começamos por conhecer a face austera, implacável da espionagem alemã, onde todos são culpados até prova em contrário, e qualquer pensamento próprio pode ser visto como um desvio dos ideais do regime. Exemplo é a sequência inicial da explicação do interrogatório, de arrepiante frieza.
Só que o tom muda quando, retirado das salas de interrogação, onde Wiesler está habituado a quebrar “culpados”, é colocado na escuta e vigilância a um casal de suspeitos. Homem solitário, Wiesler, cuja dedicação à causa e rigor na actuação nunca permitiram a ter uma vida fora do trabalho, é agora exposto a uma vida de outros, que se amam, que sofrem, que sentem, que anseiam. Através de Georg Dreyman e Christa-Maria, Wiesler vê pela primeira vez o lado negro do regime. E este é feito de intrigas e manipulações (como lhe é explicado pelo seu superior) e de chantagens e abusos do poder, como visto na acção do ministro. Percebendo o cinismo de que está rodeado (visível em como Wiesler condena interiormente a forma como Grubitz lida com o episódio das anedotas sobre Erich Honecker, o líder da RDA), Wiesler não deixa necessariamente de acreditar nos regimes socialistas. Mas apercebe-se da sua desumanização, e de como trituram vidas sem necessidade. E então Wiesler muda.
Talvez a cena mais comovente de “As Vidas dos Outros” seja o momento de transformação de Wiesler, em que, sem palavras, vemos como Dreyman chora o suicídio do seu amigo Albert Jerska (Volkmar Kleinert), director teatral caído em desgraça. Fá-lo em silêncio, ao piano, com Christa-Maria confortanto-o, tocando a “Sonata Para Um Homem Bom” (composta por Gabriel Yared, responsável por parte da lindíssima banda sonora, que contém também música pop da RDA, incluindo o recorrente tema “Stell dich mitten in den Regen” da banda Bayon, que conheceu graças ao filme um aumento no interesse do público, e a participação da City of Prague Philharmonic Orchestra), escutada do outro lado por Wiesler. Como se o poder da música pudesse expressar tudo o que as palavras nunca conseguiram, e abrir portas que se julgavam para sempre fechadas.
A partir daí Wiesler torna-se o anjo da guarda do casal, interferindo quando pode, escondendo evidências, manipulando factos. Claro que, por mais inteligente que seja Wiesler, os acontecimentos vão jogar contra si, e o filme ganha então características de thriller, que no acto final (interrogatório de Christa-Maria, e buscas a casa de Dreyman) são como que um jogo de gato e de rato entre personagens, e entre enredo e espectador.
Filmado com um realismo inexcedível (até o equipamento mostrado saiu dos museus de peças da Stasi), “As Vidas dos Outros” é tão notável pela reonstituição documental de uma outra era, como o é pelo olhar para dentro da mente dos oficiais do regime da RDA e por fim pela incrível história de humanidade nascida de um homem que evidências iniciais nos faziam duvidar que a tivesse. Mais do que um filme sobre uma parte da história da Alemanha, “As Vidas dos Outros” é um ensaio sobre a alma humana, sobre a capacidade de empatia, sobre o descobrir de sentimentos dentro de nós, sobre a escolha entre bem e mal, que definem quem verdadeiramente somos.
Nada disto seria possível sem a magistral interpretação de Ulrich Mühe, que infelizmente morreu um ano depois da estreia do filme. Se Sebastian Koch e Martina Gedeck são o casal que vai elicitar a nossa simpatia, aqueles por quem facilmente sofreremos, e que adoraríamos poder ajudar, é através dos olhos do personagem de Ulrich Mühe que tudo nos chega. E Mühe é impressionante, tanto na frieza e austeridade sempre presentes, como na emoção interior que apenas se adivinha, nunca se exteriorizando de modo evidente.
Lembrando a velha citação de John Cleese, de que mais cómico que ver alguém comportar-se ridiculamente é vermos a cara de quem vê esse alguém comportar-se ridiculamente, parece que von Donnersmarck descobriu o equivalente para o drama. Mais intenso que vermos o drama de um casal, é vermos como isso toca quem o observa. Através do olhar (dos ouvidos, na maioria do tempo) do Wiesler de Ulrich Mühe, assistimos a uma história tocante, e com ele, pelo seu modo intensamente contemplativo, somos arrastados emocionalmente. Por fim, é com ele que aceitamos a redenção em que a sua demoção se torna, e que aceitamos o prémio de reconhecimento que será o livro de Dreyman. O seu final “es ist für mich” (é para mim) é a catarse sóbria e intensa de mais de duas horas de um magnífico filme.
Produção:
Título original: Das Leben der Anderen; Produção: Wiedemann & Berg Filmproduktion / Bayerischer Rundfunk (BR) / Arte / Creado Film; País: Alemanha; Ano: 2006; Duração: 137 minutos; Distribuição: Buena Vista International (Alemanha), Sony Pictures Classics (EUA); Estreia: 23 de Março de 2006 (Alemanha).
Equipa técnica:
Realização: Florian Henckel von Donnersmarck; Produção: Quirin Berg, Max Wiedemann; Co-Produção: Florian Henckel von Donnersmarck, Dirk Hamm; Argumento: Florian Henckel von Donnersmarck; Música: Gabriel Yared, Stéphane Moucha; Direcção Musical: Adam Klemens; Fotografia: Hagen Bogdanski [filmado em Hawk Scope]; Montagem: Patricia Rommel; Design de Produção: Silke Buhr; Direcção Artística: Christiane Rothe; Cenários: Frank Noack; Figurinos: Gabriele Binder; Caracterização: Annett Schulze, Sabine Schumann; Efeitos Especiais: Adrian Lorbert, Hans Seck; Direcção de Produção: Tom Sternitzke.
Elenco:
Martina Gedeck (Christa-Maria Sieland), Ulrich Mühe (Capitão Gerd Wiesler), Sebastian Koch (Georg Dreyman), Ulrich Tukur (Tenente-coronel Anton Grubitz), Thomas Thieme (Ministro Bruno Hempf), Herbert Knaup (Gregor Hessenstein), Hans-Uwe Bauer (Paul Hauser), Volkmar Kleinert (Albert Jerska), Matthias Brenner (Karl Wallner), Charly Hübner (Udo), Bastian Trost (Prisioneiro 227), Marie Gruber (Senhora Meineke, Volker Michalowski (Especialista em Análise de Escrita), Werner Daehn (Director de Operações de Uniforme), Martin Brambach (Director Meyer), Hubertus Hartmann (Egon Schwalber), Thomas Arnold (Nowack), Hinnerk Schönemann (Subtenente Alex Stigler).