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Astrid Holm, Cinema, Cinema escandinavo, Cinema Mudo, Cinema sueco, Drama, Fantasia, Hilda Borgström, Selma Lagerlöf, Tore Svennberg, Victor Sjöström
Na véspera de Ano Novo, três bêbedos contam histórias num cemitério. Um deles, David Holm (Victor Sjöström), conta que a última pessoa a morrer em cada ano é condenada a conduzir o Carro Fantasma, que leva as almas dos mortos para o purgatório. Quando batem as doze badaladas, David Holm aparentemente morre, e é visitado pelo Carro Fantasma, conduzido pelo seu antigo amigo Georges (Tore Svennberg), que o leva a ver as vidas que ele tocou, em particular a de Edit (Astrid Holm), uma voluntária do Exército de Salvação Nacional, a morrer de tuberculose, que quer saber como está David Holm, o primeiro homem que ela tentou ajudar na sua missão, e a esposa (Hilda Borgström) que maltratou e abandonou.
Análise:
Em 1921 Victor Sjöström era já um dos nomes mais sonantes do cinema sueco, com cerca de dez anos atrás (e à frente) das câmaras. Tendo sido contratado em 1912 pela empresa estatal Svenska Bio, Sjöström dirigiu várias dezenas de filmes, a maioria dos quais se viria a perder. Entre eles destaca-se “Ingeborg Holm” (1913), vulgarmente considerado o primeiro clássico do cinema sueco. Mas foi com “O Carro Fantasma”, que Sjöström se tornou conhecido internacionalmente.
Baseado numa obra da nobelizada autora sueca Selma Lagerlöf, da qual Sjöström já tinha adaptado alguns livros ao cinema, “O Carro Fantasma” surpreendeu pela narrativa complexa, alegorias fantasistas e efeitos especiais que vinham trazer um salto enorme ao cinema da sua época. O filme, tal como o livro original, destaca-se das restantes obras de Lagerlöf por deixar de lado a idílica paisagem rural da Värmland (região de que tanto Lagerlöf como Sjöström são naturais), e se centrar num conto urbano de contornos negros.
Contado como se de uma lenda se tratasse, “O Carro Fantasma” é a história de Edit (Astrid Holm), uma voluntária do Exército de Salvação Nacional, a morrer de tuberculose, e cujo último pedido é ver David Holm (Victor Sjöström), o primeiro homem que ela tentou ajudar na sua missão, um ano antes, na noite de ano novo. As buscas para o encontrar são inúteis, pois Holm é um bêbedo e vagabundo, sem respeito ou interesse por ninguém. Nesse mesmo momento vêmo-lo no cemitério a contar a dois outros bêbedos como um antigo companheiro, Georges (Tore Svennberg) lhe contou como o último homem a morrer na noite de 31 de Dezembro se torna, por um ano, o cocheiro do carro fantasma, que deambula buscando as almas do mortos. Uma rixa rebenta entre os três bêbedos, e Holm é deixado como morto no momento das doze badaladas. Chega então o carro fantasma, cujo cocheiro é Georges. Este, ao reconhecer Holm, lamenta o seu destino, para mais quando deixa o mundo depois de causar tanto infortúnio. Georges decide então relembrar a Holm como este maltratou a mulher (Hilda Borgström) e os filhos, como caiu na bebida e maltratou Edit, a única pessoa que o tentou ajudar. Após estas histórias, Georges leva Holm a ver Edit, que morre lamentando-se não o conseguir ter salvo, e a mulher, que está à beira do suicídio. Ver isto traz o arrependimento a Holm, que assim volta à vida e a uma segunda chance de fazer o bem.
Sjöström surpreende ao construir uma narrativa complexa, que mistura realismo e fantasia, e é contada usando vários flashbacks, por vezes encadeados dentro de outros. Fazendo um forte uso da íris, para efeitos dramáticos (e quase não usando grandes planos), Sjöström traz-nos um retrato pungente de uma época de privações, numa sociedade austera, marcada pela doença e parcas capacidades económicas. Sobre ela, Sjöström filma a lenda do carro fantasma, uma alegoria que nos chega com múltiplas exposições que tornam os seus personagens vultos semi-transparentes, que se movem fantasmagoricamente pelos mesmos cenários que os vivos. Um sistema de várias camadas ajudava a criar a ilusão de três dimensões, com os fantasmas a poderem mover-se tanto à frente como atrás de cenários fixos. O efeito é tão bem conseguido que impressiona tanto bela beleza estética, como por sabermos o quão rudimentares eram os recursos técnicos à disposição em 1921.
Com conteúdo fortemente alegórico, a história é acima de tudo um conto moralizante, sobre as consequências das más acções em vida, e o poder do arrependimento. A culpa e o arrependimento são, aliás, os fios condutores da história. Se numa primeira abordagem nos centramos no protagonista (David Holm), o homem cujos maus caminhos seguidos causaram tanto infortúnio (a fuga da mulher e desespero até quase a levar ao suicídio, a doença de Edit), logo nos apercebemos que a culpa é transversal ao filme. Ela é-nos trazida desde a primeira cena, no leito de morte de Edit, que não consegue morrer sem saber que teve algum impacto positivo na vida de David Holm, pois sente-se responsável por ele e pela sua esposa. Do mesmo modo, o cocheiro fantasma, Georges, precisa de dar uma lição a Holm, pois só assim expia a sua própria culpa de em vida o ter arrastado para a bebida.
Como não podia deixar de ser, o filme termina numa onda de arrependimento, que se torna a origem de uma segunda oportunidade de optimismo para o casal Holm. Tal lembra inequivocamente “Um Conto de Natal” de Charles Dickens, ele próprio já tantas vezes adaptado ao cinema. Uma influência clara do lado fantasmagórico de “O Carro Fantasma” vê-se no filme “Do Céu Caiu Uma Estrela” (It’s A Wonderful Life, 1946) de Frank Capra, onde o personagem principal também passeia pelo mundo como fantasma, para testemunhar as acções da sua vida nos outros, mas onde Capra não tem as mesmas preocupações estéticas de Sjöström.
De resto o filme de Sjöström teve um impacto internacional que levou Hollywood a seduzir o realizador sueco, que seria de seguida contratado pela MGM para realizar vários filmes em solo americano. A sua influência tem sido citada por vários realizadores, nalguns casos de forma visual. É exemplo Stanley Kubrick que, em “Shining” (The Shining, 1980), repete a cena em que David Holm abre à machadada a porta que o separava do local onde a esposa e filhos se escondiam. Mas a sua maior influência terá sido em Ingmar Bergman, um discípulo de Sjöström, que usa o mesmo universo alegórico no seu famoso “O Sétimo Selo” (Det Sjunde Inseglet, 1957). Bergman convidaria Sjöström a interpretar o seu “Morangos Silvestres” (Smullstromstället, 1957), um filme com claras citações de “O Carro Fantasma” (a carroça de onde cai um caixão, o protagonista que vai passando por momentos anteriores da sua vida).
Produção:
Título original: Körkarlen; Produção: Svensk Filmindustri (SF); País: Suécia; Ano: 1921; Duração: 93 minutos; Distribuição: Svensk Filmindustri (SF) (Suécia), Decla-Bioscop AG (Alemanha), Metro Pictures Corporation (EUA); Estreia: 1 de Janeiro de 1921 (Suécia), 24 de Janeiro de 1924 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Victor Sjöström; Produção: Charles Magnusson [não creditado]; Argumento: Victor Sjöström [a partir de um livro de Selma Lagerlöf]; Fotografia: Julius Jaenzon [preto e branco]; Direcção Artística: Alexander Bako [não creditado], Axel Esbensen [não creditado].
Elenco:
Victor Sjöström (David Holm), Hilda Borgström (Mrs. Holm), Tore Svennberg (Georges), Astrid Holm (Edit), Concordia Selander (Mãe de Edit), Lisa Lundholm (Maria), Tor Weijden (Gustafsson), Einar Axelsson (Irmão de David), Olof Ås (Condutor), Nils Aréhn (Capelão da Prisão), Simon Lindstrand (Colega de David), Nils Elffors (Colega de David), Algot Gunnarsson (Trabalhador), Hildur Lithman (Mulher do Trabalhador), John Ekman (Polícia).