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Alain Resnais, Cinema, Cinema Francês, Claude Sainval, Delphine Seyrig, Drama, Jean Champion, Jean-Baptiste Thiérrée, Jean-Pierre Kérien, Laurence Badie, Nita Klein, Nouvelle Vague
Hélène (Delphine Seyrig) vive na cidade costeira de Boulogne-sur-Mer, com o seu enteado Bernard (Jean-Baptiste Thiérrée), regressado do serviço militar em Argel e que namora a elusiva Muriel que ninguém ainda viu. Hélène recebe a visita do antigo namorado, Alphonse (Jean-Pierre Kérien), o qual, também regressado de uma vida vivida em Argel, traz consigo a sobrinha Françoise (Nita Klein). Os diálogos começam cordialmente, mas cedo vão dar no procurar resolver assuntos do passado, lidar com culpas, decisões incompreendidas e visões diferentes dos mesmos episódios, durante o qual, principalmente Hélène e Alphonse vão tentar perceber o que correu mal nas suas vidas.
Análise:
Alain Resnais, o mais filosófico dos autores da Nouvelle Vague francesa, estreava em 1963 o filme “Muriel ou o Tempo de um Regresso”. Era o seu terceiro filme, e primeiro a cores, vindo em perfeita continuidade com os dois filmes anteriores, “Hiroshima, Meu Amor” (Hiroshima mon amour, 1959) e “O Último Ano em Marienbad” (L’Année dernière à Marienbad, 1961). Como neles, o filme trata da busca de quem somos, através da investigação obsessiva de memórias de um passado que parece ter tanto de longínquo como de imaginário.
Desta vez tudo acontece na costeira Boulogne-sur-Mer, uma cidade costeira, e retiro onde vive Hélène (Delphine Seyrig), uma viúva que vende mobiliário antigo, tendo consigo o seu enteado, Bernard (Jean-Baptiste Thiérrée). Este diz namorar Muriel, uma rapariga que Hélène, não conhece, e é um recém-chegado da guerra na Argélia, que lhe deixou alguma amargura por acções como a tortura da verdadeira Muriel, uma mulher acusada de sabotagem.
Hélène recebe a visita de Alphonse (Jean-Pierre Kérien), um antigo amante, que regressou recentemente, também ele, de Argel, e surge acompanhado da jovem sobrinha, a actriz Françoise (Nita Klein). O reencontro é uma oportunidade para examinar o passado, recordar os desencontros e, quem sabe, tentar corrigir erros antigos. Mas esse exercício, sempre interrompido por acontecimentos momentâneos, e a interferência dos outros, parece ser impossível, quando esse passado é tão longínquo, e as memórias tão fugidias como a imaginação.
Como nos seus filmes anteriores, Resnais conta uma história com uma complexa montagem de sequências, que nos retiram muito da hipótese de a compreendermos sequencialmente. Mais que ver em “Muriel ou o Tempo de um Regresso” uma narrativa estruturada (é na verdade fragmentada de um modo que tem mais a ver com a literatura que com o cinema), deve ver-se um exercício de busca, ilustrado em episódios, frases, pensamentos, e claro, através das tantas imagens de Boulogne-sur-Mer, que se vai insinuando quase intrusivamente, muitas vezes com os planos da cidade a tomar o protagonismo, relegando os personagens para um papel secundário.
Mas Resnais perturba-nos com mais que essa estrutura complexa. Os diálogos são interrompidos e deixados a meio, o cross-cutting entre dois diálogos não nos devolve ao anterior, os temas de conversa mudam sem sabermos como, a montagem de uma caminhada no exterior mistura planos nocturnos e diurnos, as diferentes sequências sucedem-se sem nos deixar construir uma lógica temporal ou espacial. Tudo isto contribui para a ideia que estamos perante um desenrolar que tem essencialmente a ver com a forma associativa e desorganizada da nossa memória.
Se à partida parecemos ter uma história bem delineada (a história de um reencontro), com um enredo secundário de crítica política (a situação na Argélia), logo esses temas são secundarizados perante aquele que é fundamental em Resnais, o conhecimento do outro e de nós próprios. Quase que ouvimos os mantras dos filmes anteriores serem repetidos (o “tu não viste nada em Hiroshima” do primeiro filme, ou o “Recorda-te!” do segundo). Agora é o “Porque me convidaste?”, que pode funcionar a tantos níveis. Convite para reatar uma relação passada que visivelmente não é vista igualmente pelos dois lados, ou simplesmente um convite figurativo, como o abrir de uma caixa de memórias que se queria fechada? (não lida Hélène com antiguidades?).
Assim, tão elusivo como o personagem de Muriel e como o papel de Argel (que curiosamente une Alphonse e Bernard) é a relação entre Hélène e Alphonse. O seu reconstruir parece sempre comprometido por episódios alheios, por interferência de Françoise e Bernard, e pela incompreensão do que realmente terá acontecido, quando nem os próprios interessados parecem chegar a um acordo quanto aos acontecimentos do passado (ela idiliza um tempo, que ele imagina bem diferente). Tão elusivo é ainda o cenário, e a saída e entrada de personagens, quase aleatoriamente, em cenários (a casa de Hélène) que mudam sem que se perceba como nem porquê, transmitindo-nos sempre uma sensação de irrealismo, causando-nos até desconforto, no que Resnais disse ser um filme sobre personagens que temem o novo mundo que evolui perante si.
Nesse jogo de descobertas e escondidas, Alphonse e Hélène procuram recuperar algo do passado, ao mesmo tempo que testemunhamos as penas e dores de Bernard (amargurado pela tortura infligida a Muriel, na guerra) e Françoise (na verdade amante e não sobrinha de Alphonse), mas também nos perdemos num verdadeiro caleidoscópio de personagens e situações, como se cada uma tivesse direito a destronar a importância das outras. Essa complexidade e nivelamento como que coloca os personagens em sequência, deixando ainda mais perguntas. E se Bernard, amargurado pela guerra está a repetir a história que levou Alphonse a perder Hélène? Porque as memórias de Alphonse sobre outras mulheres são tão familiares a Hélène? Como se justifica a relação entre Françoise e Alphonse? Todas as perguntas são cíclicas, como parecem ser as histórias e os personagens, presos num tempo que não querem que evolua (mais uma vez como nos dois filmes anteriores de Resnais), mesmo quando isso os levará à tragédia.
Provocando-nos com a sua técnica narrativa, Resnais faz-nos pensar, enquanto nos agride com uma miríade de emoções e questões, que nunca nos deixam sentir seguros, voltando a explicar-nos a difícil tarefa de nos conhecermos, quando somos prisioneiros de um tempo, uma memória e decisões que nem sempre conseguimos compreender.
Produção:
Título original: Muriel ou le temps d’un retour; Produção: Argos Films / Alpha Productions / Eclair / Les Films de la Pléiade / Dear Films; País: França; Ano: 1963; Duração: 111 minutos; Distribuição: Les Films de la Pléiade (França), Argos Films (Internacional); Estreia: 24 de Julho de 1963 (República Federal Alemã), 18 de Junho de 1969 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Alain Resnais; Produção: Anatole Dauman; Co-Produção: Pierre Braunberger; Argumento: Jean Cayrol; Música: Hans Werner Henze; Orquestração: Hans Werner Henze; Fotografia: Sacha Vierny [cor por Eastmancolor]; Montagem: Kenout Peltier, Eric Pluet; Design de Produção: Jacques Saulnier; Cenários: Charles Merangel; Figurinos: Lucilla Mussini; Caracterização: Alexandre Marcus, Éliane Marcus; Direcção de Produção: Philippe Dussart; Cantora: Rita Streich.
Elenco:
Delphine Seyrig (Hélène Aughain), Jean-Pierre Kérien (Alphonse Noyard), Nita Klein (Françoise), Jean-Baptiste Thiérrée (Bernard Aughain), Claude Sainval (Roland de Smoke), Laurence Badie (Claudie), Jean Champion (Ernest), Jean Dasté (Homem com a Cabra), Martine Vatel (Marie-Dominique, aka Marie-Do), Julien Verdier (O Tratador de Cavalos), Philippe Laudenbach (Robert), Nelly Borgeaud (A Mulher do casal de compradores), Catherine de Seynes (Angèle), Gaston Joly (Antoine, o Alfaite), Gérard Lorin (Marc), Françoise Bertin (Simone).