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Alberto Moravia, Brigitte Bardot, Cinema, Cinema Francês, Drama, Filme sobre Cinema, Fritz Lang, Giorgia Moll, Jack Palance, Jean-Luc Godard, Michel Piccoli, Nouvelle Vague
Em Itália, o escritor Paul Javal (Michel Piccoli) é chamado aos estúdios da Cinecittà, pelo produtor americano Jeremy Prokosch (Jack Palance), para reescrever o filme que este está a produzir para ser realizado por Fritz Lang (interpretado pelo próprio). Prokosch teme que o filme se torne demasiado artístico, o que causa um eterno conflito com a visão do realizador. Ao mesmo tempo, depois de Prokosch ter tentado seduzir Camille (Brigitte Bardot), a esposa de Paul, esta vai tentando que o marido recuse o trabalho. A aproximação entre Paul e o argumento torna-se um paralelo do caminhar para o fim da sua relação com Camille.
Análise:
O projecto “O Desprezo” começou quando Carlo Ponti abordou Jean-Luc Godard para a produção de um filme, com um financiamento acima daquilo que era habitual no realizador, e no movimento Nouvelle Vague. Godard gostou da ideia e sugeriu o livro de Alberto Moravia, que ele pretendia realizar com Kim Novak e Frank Sinatra. A recusa dos dois actores norte-americanos levou Ponti a sugerir dois italianos, Sophia Loren e Marcelo Mastroiani. Foi a vez de Godard recusar, mas a intervenção de dinheiro americano, na pessoa do produtor Joseph E. Levine, acabou por falar mais alto. Levine queria a superestrela Brigitte Bardot no filme, e Godard teve de anuir, colocando-a a contracenar com uma escolha sua, Michel Piccoli.
Filmando em Itália, na Cinecittà e na ilha de Capri, Godard rodou um filme sobre o cinema, cheio de ironia e referências cíclicas sobre a arte, o cinema em particular, e alguns dos próprios intervenientes.
“O Desprezo” centra-se no casal Paul e Camille Javal (Michel Piccoli e Brigitte Bardot), em Itália, pois Paul foi chamado por um produtor norte-americano. Este, Jeremy Prokosch (Jack Palance) é o típico homem de negócios, habituado a ter o que quer à custa do seu dinheiro (seja um filme, ou uma mulher), com desprezo para o cinema artístico da Europa, querendo apenas um sucesso que faça render o seu dinheiro. Descontente com o trabalho do seu realizador, nem mais que o lendário alemão Fritz Lang (interpretando-se a si próprio), Prokosch quer que Paul reescreva o argumento, ao mesmo tempo que tenta seduzir Camille. Esta vê a aceitação de Paul como uma prova de que o marido não se interessa por ela, e a relação entre eles começa a complicar-se.
Depois de quase se convencer a deixar o trabalho, Paul anui a ir para Capri com a esposa, onde ficam na casa de Prokosch durante as filmagens que decorrem na ilha. Só que enquanto Paul se embrenha no filme e nas discussões filosóficas que o envolvem, não percebe que vai perdendo a esposa.
Num filme que na forma é muito mais clássico que o habitual na sua obra (inclusivamente no uso do ecrã panorâmico e da cor), Jean-Luc Godard mantém-se fiel à temática daquilo que eram os princípios da Nouvelle Vague. Falando sobre cinema, Godard começa logo desde as primeiras imagens a mostrar-nos esse meio numa desmistificação sobre o papel da sétima arte que, assim como espectadores por detrás do palco de um teatro, podemos testemunhar e desconstruir o «suspension of desbelief» de que um filme é feito. É emblemática a sequência em que acompanhamos o próprio filme, filmado num travelling sobre carris, para vermos a câmara a apontar para nós, como, aliás, a câmara por onde vemos aponta aquela que parece estar a registar o filme.
Estamos depois numa história que tem a produção de um filme como elemento catalisador. Testemunhamos o jogo de força entre produtor (pragmático, materialista) e realizador (filosófico, idealista), com o escritor pelo meio, participando nas discussões, sendo usado como bola de pingue-pongue, mas na verdade nunca produzindo trabalho (de lembrar que Godard era acusado de filmar sem qualquer argumento).
Não será mesmo demais ver algumas cenas de “O Desprezo” como uma sátira ao próprio filme. Se Prokosch (que lê citações de um livro minúsculo que traz sempre consigo) se deleita com cenas de nudez, a verdade é que foi por insistência dos produtores que Brigitte Bardot foi contratada e filmada nua. Por outro lado, o próprio Godard surge como assistente de Lang, o qual é uma espécie de paladino de ideias da Nouvelle Vague, dizendo que o CinemaScope é bom para cobras e caixões, mas não para pessoas. Finalmente há quem veja no facto de Bardot surgir por vezes de peruca negra uma referência a Anna Karina, a esposa e habitual actriz de Godard.
Para além do filme sobre o filme, que parece decorrer em círculos num argumento que nunca se percebe se vai mesmo ser modificado – algo que curiosamente remete para um outro filme do mesmo ano “Fellini Oito e Meio” (8½, 1963) de Federico Fellini, – “O Desprezo” segue outro parâmetro da Nouvelle Vague, a discussão intelectual. Assim discute-se, para além de cinema (falando-se de Chaplin, Griffith e Ray, com vários posters famosos em fundo – Hawks, Hitchcock, Rossellini), da integridade dos autores e altos propósitos da arte, o papel da Odisseia de Homero (o tema do filme dentro do filme), e a poesia de Dante e de Hölderlin, que colocam autores e heróis em contraponto com os deuses e as suas vontades.
Em paralelo assistimos à degradação da relação matrimonial entre Paul e Camille (com uma célebre sequência a dois, de meia hora, no seu apartamento). Ela, deixada demasiado tempo sozinha com Prokosch, na primeira vez que se encontram, pensa que o marido a usa como moeda de troca para obter aquele trabalho. Ele diz-se disposto a abandonar o trabalho se isso a faz feliz, mas nunca o concretiza, mesmo percebendo que quanto mais aceita de Prokosch (como a estadia na sua casa de Capri), mais Camille se vai afastar dele. O jogo da fidelidade é aqui testado e estudado no mito de Ulisses e Penélope, cuja história (e casamento) é reinterpretada pelos diversos personagens, onde Paul é Ulisses, Camille é Penélope e Prokosch é Poseidon.
“O Desprezo”, que na versão original tem diálogos em francês, inglês, italiano e alemão, foi um sucesso moderado em França, muito abaixo do habitual para Brigitte Bardot, muito acima de qualquer outro filme de Godard, que detestou fazê-lo e não voltaria a querer funcionar fora do seu controlo completo. Apesar disso, “o filme é geralmente considerado uma obra-prima pela crítica.
Produção:
Título original: Le mépris [Título inglês: Contempt]; Produção: Les Films Concordia / Rome Paris Films / Compagnia Cinematografica Champion; País: França; Ano: 1963; Duração: 98 minutos; Distribuição: Cocinor (França), Embassy Pictures (EUA); Estreia: 29 de Outubro de 1963 (Itália), 20 de Dezembro de 1963 (França), 15 de Julho de 1974 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Jean-Luc Godard; Produção: Georges de Beauregard, Carlo Ponti, Joseph E. Levine [não creditado]; Argumento: Jean-Luc Godard [baseado no livro “Il Disprezzo” de Alberto Moravia]; Música: Georges Delerue; Fotografia: Raoul Coutard [filmado em Franscope, cor por Technicolor]; Montagem: Agnès Guillemot, Lila Lakshmanan [não creditada]; Figurinos: Tanine Autré [não creditada]; Caracterização: Odette Berroyer [não creditada]; Direcção de Produção: Philippe Dussart, Carlo Lastricati.
Elenco:
Brigitte Bardot (Camille Javal), Michel Piccoli (Paul Javal), Jack Palance (Jeremy Prokosch), Giorgia Moll (Francesca Vanini), Fritz Lang (Fritz Lang).
Assisti este filme 2x , só não li o livro do Moravia, filme falando sobre cinema (mainstream,marketing,bastidores). Naquele ingênuo começo dos anos 1960 do seculo passado o cinema italiano e francês falavam mais alto. O finado Jack Palance se destacou muito como vilão em filmes de cawboy, vampiros!