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Andre Gregory, Barbara Hershey, Bíblico, Cinema, Cristianismo, David Bowie, Drama, Filme de época, Filme Histórico, Harry Dean Stanton, Harvey Keitel, Jesus Cristo, Juliette Caton, Martin Scorsese, Nikos Kazantzakis, Verna Bloom, Victor Argo, Willem Dafoe
Jesus de Nazaré (Willem Defoe) é um carpinteiro que toda a vida foi atormentado por vozes e dores de cabeça, que por vezes pensa virem de Deus, outras do demónio. Perdido entre a subjugação aos romanos (fazendo cruzes quando nenhum outro carpinteiro as faz), a tentação de viver uma vida normal com a mulher que já amou (Barbara Hershey), e o chamamento divino que o faz acreditar estar destinado a grandes feitos, Jesus abandona tudo para meditar no deserto. Decide então pregar a palavra de Deus, reunindo discípulos, entre eles Judas (Harvey Keitel), amigo de longa data que espera juntar Jesus à sua missão de revolução. Mas os caminhos de Jesus são difíceis de compreender, e após a confirmação de João, o Baptista, de que é ele o Messias, passa da pregação do amor à do fogo, e à missão de morrer na cruz. Antes porém passará pela maior das suas tentações.
Análise:
Em 1988, via finalmente a luz do dia o projecto que Martin Scorsese já acalentava há vários anos, a dramatização do livro de Nikos Kazantzakis, “A Última Tentação de Cristo”. Se desde o seu início, a carreira de Scorsese fora sempre marcada pela simbologia cristã, com os seus personagens a pertenceram a ambientes tradicionais (a Little Italy de Nova Iorque), atormentados pela culpa do pecado, necessidade de expiação e conciliação entre cultura e modernidade, era agora a vez de o inspirador do Cristianismo ser motivo dessa análise interior.
Tão polémico quanto o tema possa ser, foi para Scorsese claro que, em vez de seguir os Evangelhos como fonte, seria o livro (já de si uma análise polémica) de Nikos Kazantzakis, a guiar o seu filme. Scorsese terá chegado a este livro por sugestão de Barbara Hershey, em 1972 durante as filmagens de “Uma Mulher da Rua” (Boxcar Bertha, 1972). Tal terá pesado na escolha da actriz para o papel de Maria Madalena. Apesar de um argumento de Paul Schrader, pronto há anos, e elogiado por todos, ao que consta as negociações com a Universal não terão sido fáceis, pelo medo das reacções negativas da parte de sectores mais conservadores. Estas envolveram o compromisso de Scorsese filmar de seguida um filme comercial, que seria “O Cabo do Medo” (Cape Fear, 1991) que o realizador faria para a mesma produtora.
Ainda assim a falta de fé da produtora no projecto (ou o medo), resultou num baixíssimo orçamento, para aquilo que era o objectivo do filme. Com o custo de mover toda a equipa para Marrocos (onde Scorsese procurou cenários naturais que remetessem para um passado sem máculas de ocidentalização), o dinheiro restante era pouquíssimo. Isso implicou cortes em pessoal e meios, e uma constante improvisação (Willem Dafoe filmou cheio de febre, Barbara Hershey aplicava em si mesma tatuagens descartáveis, os soldados romanos no cerco do templo são sempre os mesmos cinco, etc.).
Com cenários feitos de ruínas romanas e construções tribais, Scorsese filmou a Palestina de 33 d.C. como uma região árida, pobre e sedenta de mudança. Os figurantes eram habitantes locais, que conferiam às imagens um aspecto muito pouco ocidental, o qual saía reforçado com a pouco convencional banda sonora de Peter Gabriel (seguindo a tradição de Scorsese trabalhar com músicos rock) que, embrenhado na World Music, construiu paisagens sonoras baseadas em sons de África e da Ásia, tocados por músicos e instrumentos desses locais.
É nesse cenário que evolui a figura de Jesus de Nazaré (Williem Dafoe) que surge como um carpinteiro que faz cruzes para os romanos, e por isso é odiado pelos seus conterrâneos. Entre estes está o amigo Judas (Harvey Keitel), um zelota, envolvido em lutas de revolta, e que tenta puxar Jesus para a sua causa. Mas Jesus tem uma luta interna, as vozes que ouve desde a infância, que ele pensa serem de Deus, que lhe reserva um destino maior que a vida. Por essas vozes, que surgem como inimigas dores de cabeça, ou presenças indesejadas, Jesus vai esperando a revelação de um destino, sonhando com grandeza, e temendo a sua consequência, enquanto os amigos, e a antiga namorada, agora prostituta, Maria Madalena (Barbara Hershey), as vêem como prova de loucura, ou refúgio cobarde de quem não se quer comprometer.
É no deserto que Jesus aceita a sua missão de pregador, e falando de amor, reúne seguidores, levando a palavra de Deus, executando milagres, e aceitando-se como o Messias, após a confirmação de João Baptista (Andre Gregory). Resta-lhe entrar em Jerusalém, proclamando a sua revolução, uma revolução interior, mas logo percebe que o seu fim só será alcançado, morrendo na cruz, para depois ressuscitar.
Por entre dúvidas e medos, Jesus pede para ser poupado a esse destino, e um anjo surge-lhe durante a crucificação, salvando-o e dando-lhe uma vida de homem comum, na qual casará com Maria Madalena, depois Maria e Marta (irmãs de Lázaro), das quais terá vários filhos. É no leito da sua morte que, mais uma vez sob o chamamento de Judas, Jesus percebe que tudo foi um engano de Satanás, implorando para que o seu destino seja cumprido. Volta então à cruz, onde morre, como a profecia indicava, feliz, por se ter feito a vontade de Deus.
Com tanto de complexo como de polémico, a verdade é que a maioria dos críticos apenas se centraram numa cena, Jesus nu, na cama com Maria Madalena. Por ela, quase tudo o resto foi esquecido, embora de facto, a história de “A Última Tentação de Cristo” teste os limites da tolerância dos cristãos mais fundamentalistas com conceitos como a humanidade de Jesus, os seus desejos terrenos, os seus erros, dúvidas e pecados.
O que Scorsese (e Kazantzakis antes dele) faz é voltar aos primeiros anos do Cristianismo e colocar a mesma questão que causou as primeiras polémicas, concílios e cisões. Esta foi a questão da natureza de Jesus. Humano, divino, ou ambos? Como se sabe, venceu a teoria que afirma que Jesus encerra em si as duas naturezas, e quem dizia algo diferente foi considerado herege. Para os pais da Igreja Cristã, quem considerasse Jesus apenas humano negaria o seu lado de redentor, como filho de Deus. Quem o considerasse apenas divino consideraria falso o seu sofrimento e paixão, pois um deus não sofre. Mas mesmo a própria forma como as duas naturezas coexistem seria motivo de mais discussões e cisões no Cristianismo.
Em “A Última Tentação de Cristo”, Scorsese procura a sua própria explicação, num filme que nos traz mais perguntas que respostas. Jesus é-nos mostrado como um homem que duvida, tem medo, erra, e questiona o seu próprio papel. Ora acredita que Deus é seu pai e o guia, ora teme que as vozes que ouve sejam tormentas demoníacas. Ora acredita que está a cumprir um destino divino, ora teme que apenas se esteja a deixar levar pelo seu ego. Ora acredita que o caminho para Deus é o do seu sacrifício, ora quer deixar tudo e ter uma vida normal.
Pelo caminho vemo-lo debater-se com dúvidas, ser atormentado por vozes, comportar-se como louco (sofrendo daquilo que poderia ser esquizofrenia e epilepsia), falar como se tocado por uma centelha divina, fazer milagres, ter em si compaixão e ódio. Quase que, tal como o personagem Jesus, “A Última Tentação de Cristo” caminha entre Deus e o diabo, nunca nos deixando tranquilos quanto ao percurso que está a ser seguido. É, no entanto, uma história humana, de sofrimento genuíno, paixão legítima, e uma caminhada dolorosa, que por linhas tortas (as tais tentações humanas), se escreverá de modo direito. É mesmo notável que Scorsese consiga, sem alterar uma linha aos Evangelhos, criar uma história original, preenchendo-lhes as entrelinhas com algo que até então não parecia interessar a ninguém: quem era de facto o homem Jesus de Nazaré.
Embora na sua primeira versão, num projecto apresentado à Paramount por volta de 1983, fossem escolhidos Aidan Quinn como Jesus, Ray Davies como Judas, Vanity como Maria Madalena e Sting como Pilatos, o elenco final seria completamente diferente. Apesar de Eric Roberts e Christopher Walken terem sido ainda considerados para o papel de Jesus, este recairia sobre o então ainda não muito conhecido Willem Defoe.
Defoe é perfeito no representar do carácter ambíguo de Jesus, ao mostrar-se fraco, colérico, sofredor, optimista, numa enorme gama de emoções, sempre que o argumento o exige. Ao seu lado Judas (Harvey Keitel), choca talvez pelo modo tão mundano de se comportar e falar. Era, aliás, convicção de Scorsese de que os apóstolos deviam ter uma certa homogeneidade de comportamento e dicção, escolhendo por isso apenas actores com sotaque nova-iorquino. Esse modo tão terreno de falar e se mover choca com a tradicional pompa dos filmes bíblicos, aqui completamente ausente.
Outro choque são as cenas de nudez e sexo, como as que envolvem Maria Madalena, que aqui vemos durante o desempenho da sua profissão. Barbara Hershey venceria o Globo de Ouro por uma interpretação comovente e pungente, como a mulher que caiu na prostituição depois de ter tido o coração dilacerado por aquele que a trocou por Deus.
Mas o maior choque que se poderá apresentar a um cristão é a ideia de que Jesus poderia ter preferido uma vida normal, decidindo não morrer na cruz. Mesmo que no final esta se revele de uma forma ambígua (Fantasia? Realidade alternativa? Tentação do demónio? Lição necessária por Deus?), que conduz àquilo que se tornou o pilar mais fundamental do Cristianismo, a morte voluntária na cruz, para a redenção dos homens. É curioso ver que nesta versão Judas surge como o único verdadeiro amigo de Cristo, e até a traição foi combinada entre os dois.
Scorsese, fugindo aos clichés dos filmes bíblicos de Hollywood, filmou pessoas de carne e osso, usando habitantes locais como figurantes, comportamentos não encenados como pano de fundo, e actores que falam como as pessoas da rua. Os cenários são parcos, mas filmados de um modo dramático, impressionando pelas cores (a aridez amarelada trespassa todo o filme), pelos sons e pelos movimentos, que colocam “A Última Tentação de Cristo” longe de tudo o que o cinema já fez para representar Jesus Cristo.
O resultado é um filme impressionante, que provoca tanto visualmente como pelas ideias que transmite, servido por uma interpretação tocante de Willem Defoe, que não deixa ninguém indiferente. Foi ainda assim, apesar de uma campanha negativa, um moderado sucesso de bilheteira, mesmo com Scorsese a ser nomeado para o Oscar de Melhor Realizador.
A polémica em torno de “A Última Tentação de Cristo” tornou-se tão famosa como o próprio filme, com ataques dos sectores mais conservadores, desde os pastores evangelistas norte-americanos ao polémico Monsenhor Lefebvre. Como consequência o filme foi proibido em muitos países (encontrando-se ainda hoje banido nalguns), sofreu contestações públicas, manifestações à porta de cinemas, e até um infame ataque com cocktails molotov em França que levou ao incêndio de uma sala de cinema, fazendo algumas vítimas mortais. Temendo represálias, várias cadeias de aluguer de vídeo recusaram ter o filme nos seus catálogos.
Palavra final para a banda sonora de Peter Gabriel, inovadora em muitos sentidos, fazendo uso de música étnica com tratamento electrónico, e pela qual o músico recebeu uma nomeação para os Globos de Ouro. Gabriel editaria a obra em CD, com o título “Passion: Music for The Last Temptation of Christ”, que lhe valeria um Grammy em 1990.
Produção:
Título original: The Last Temptation of Christ; Produção: Universal Pictures / Cineplex Odeon Films; Produtor Executivo: Harry J. Ufland; País: EUA / Canadá; Ano: 1988; Duração: 163 minutos; Distribuição: Universal Pictures; Estreia: 12 de Agosto de 1988 (EUA), 23 de Setembro de 1988 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Martin Scorsese; Produção: Barbara De Fina; Argumento: Paul Schrader, Jay Cocks [não creditado] [adaptado do livro homónimo de Nikos Kazantzakis]; Música: Peter Gabriel; Fotografia: Michael Ballhaus [cor por Technicolor]; Montagem: Thelma Schoonmaker; Design de Produção: John Beard; Direcção Artística: Andrew Sanders; Cenários: Giorgio Desideri; Figurinos: Jean-Perre Delifer; Caracterização: Manlio Rocchetti; Director de Produção: Laura Fattori; Efeitos Especiais: Dino Galiano.
Elenco:
Willem Dafoe (Jesus), Harvey Keitel (Judas), Barbara Hershey (Maria Madalena), Victor Argo (Apóstolo Pedro), Andre Gregory (João Baptista), Verna Bloom (Maria, Mãe de Jesus), Peggy Gormley (Marta, Irmã de Lázaro), Randy Danson (Maria, Irmã de Lázaro), Harry Dean Stanton (Saulo / Paulo), David Bowie (Pôncio Pilatos), Juliette Caton (Anjo), Roberts Blossom (Velho Mestre), Gary Basaraba (Apóstolo André), Michael Been (Apóstolo João), Paul Herman (Apóstolo Filipe), John Lurie (Apóstolo Tiago), Leo Burmester (Apóstolo Nathaniel), Alan Rosenberg (Apóstolo Tomé), Barry Miller (Jeroboão), Irvin Kershner (Zebedeu), Tomas Arana Arana (Lázaro), Del Russel (Cambista), Nehemiah Persoff (Rabino), Donald Hodson (Saduceu), Peter Berling (Pedinte), Mohammed Mabsout (Outro Apóstolo), Ahmed Nacir (Outro Apóstolo), Mokhtar Salouf (Outro Apóstolo), Mahamed Ait Fdil Ahmed (Outro Apóstolo).