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Akinari Ueda, Cinema, Cinema japonês, Eitaro Ozawa, Era dourada do cinema japonês, Filme de época, jidai-geki, Kenji Mizoguchi, Kinuyo Tanaka, Machiko Kyō, Masayuki Mori, Mitsuko Mito
Sinopse:
Nas margens do Lago Biwa, na Província de Omi, fica a aldeia de Ugetsu, que no século XVI é assolada pela guerra civil. Ali vivem dois casais, Genjurō e Miyagi (Masayuki Mori e Kinuyo Tanaka) e Tōbei e Ohama (Eitaro Ozawa e Mitsuko Mito). Ambiciosos a ponto de por em perigo as suas vidas, Genjurō é um diligente trabalhador, orgulhoso da sua arte de oleiro, enquanto o cunhado Tōbei sonha ser um samurai. Ambos os casais rumam à cidade para vender os produtos de Genjurō, esperando-os sortes diferentes. Tōbei consegue dinheiro para comprar armadura e espada e parte em busca de fama, deixando a sua esposa Ohama cair na prostituição. Quanto a Genjurō, fica na cidade a vender, enviando a esposa e o filho para casa. Mas esta é atacada e morta por bandidos, enquanto ele se deixa seduzir por um fantasma (Machiko Kyō).
Análise:
Um ano após o sucesso de “A Vida de O’Haru” (Saikaku ichidai onna, 1952), Kenji Mizoguchi foi convidado pela Daiei (um dos maiores estúdios japoneses de então) para uma produção de maior fôlego. O resultado foi mais um jidai-geki (drama histórico do tempo dos samurais), desta vez tendo por base contos fantásticos de Akinari Ueda, de 1776.
Com uma tradução que significa algo como “Contos do Luar e da Chuva”, o filme tem a característica peculiar que conciliar o drama histórico japonês, baseado num fundo de acontecimentos reais, com uma história de fantasmas. Nele, Mizoguchi consegue o feito de, através de uma fotografia inteligente, passar do realismo à fantasia, como se descascasse véus subtis, que nos envolvem num grau de incerteza contagiado pelos próprios personagens.
Assim, a história mostra-nos dois casais unidos pelas irmãs e Miyagi (Kinuyo Tanaka) e Ohama (Mitsuko Mito), que vivem numa pequena aldeia, assolada pela guerra civil no século XVI. A primeira é casada com Genjurō (Masayuki Mori), um oleiro, que quer aproveitar a guerra para fazer fortuna a vender os seus produtos. A segunda é casada com Tōbei (Eitaro Ozawa), um sonhador que tudo o que deseja é ser um samurai famoso.
Contra o conselho das mulheres, que temem a exposição aos soldados e bandidos, os dois homens preparam um enorme conjunto de porcelanas e os quatro vão para a cidade. Perante o perigo da guerra Genjurō envia a esposa de volta a casa com o filho. Mas, sem que ele saiba, ela tem de fugir dos bandidos que buscam de comida, e acaba morta por eles. Com os cunhados, Genjurō faz bons negócios, ganhando dinheiro. O destino do trio é no entanto diferente. Tōbei foge com algum dinheiro e torna-se samurai, conseguindo por algum tempo uma fama feita de oportunismo. Tudo muda quando reencontra a esposa Ohama, que se tornara uma prostituta para sobreviver. Os dois decidem abandonar tudo e voltar à aldeia em humildade. Já Genjurō é seduzido por uma das suas clientes, Lady Wakasa (Machiko Kyō), que o leva para sua casa e aos poucos o vai fazendo esquecer a sua vida anterior.
Genjurō vive com Wakasa num tempo irreal, em que tudo parece paz e beatitude, até se encontrar com um monge que lhe explica que Wakasa morreu e ali só habitam fantasmas. Com encantamentos pintados no corpo, Genjurō enfrenta Wakasa e quebra o encantamento, voltando depois para casa. Aí encontra a esposa Miyagi, e ambos prometem esquecer o passado e recomeçar de novo. Ao acordar no dia seguinte, Genjurō percebe que a esposa já morrera há algum tempo. A sua promessa mantém-se, dedicando-se ao trabalho honesto na terra onde foram felizes.
Com um pé no realismo histórico (ao nível do anterior “A Vida de O’Haru”) e outro na fantasia, Mizoguchi conduz-nos por um mundo de emoções, ora ludibriando-nos (como nas aparições fantásticas), ora mostrando-nos os acontecimentos com extrema crueza (como na morte de Miyagi). O resultado é uma história empolgante e comovente, e ainda hoje enigmática. Por ela passa o tema da viagem e do regresso, a queda no inferno e a redenção, o esquecimento encantado dos contos de fadas, e todo um universo onírico, que Genjurō vive. Estaremos na presença de sonhos, fantasias, encantamentos, ilusões? É Wakasa quem verdadeiramente encanta Genjurō, ou é o fantasma da mulher que lhe pretende ensinar depois de morta o que não conseguira enquanto viva?
Fazendo uso de um tempo remoto de samurais, guerras distantes, sentidos de honra e hierarquia que nos parecem estranhos, e hábitos excêntricos, como o “hikimayu” (a prática de remoção de sobrancelhas para as substituir por uma pintura esborratada a meio da testa), “Contos da Lua Vaga” funciona tanto como um distante conto de fadas, como uma alegoria a algo tão próximo como a ambição desmedida, as ilusões e busca da aparência.
Com um maior número de meios ao seu dispor (quer humanos, quer técnicos), o filme de Mizoguchi impressiona pelos seus famosos planos-sequência, pelas atmosferas intensas (quer ao filmar uma noite fantasiosa, quer na fotografia nublosa nos momentos de mistério, quer na luz dos planos panorâmicos), e pelas panorâmicas filmadas de cima (em grua) em movimentos de rara beleza. Exemplo é a sequência da reunião em casa de Genjurō e Miyagi, com uma panorâmica de cerca de 180º a rodar pela casa vazia, para, ao repetir o varrimento em sentido oposto, vermos uma natural, mas inesperada cena doméstica.
Todo filme, embora, embora pleno do amargo da guerra e das decisões funestas dos personagens, está pejado de lirismo, como o exemplificado nas cenas românticas de Genjurō e Wakasa, filmadas com elegância, onde o movimento da câmara destaca a passagem do tempo, a passividade e uma contemplação quase zen.
“Contos da Lua Vaga” foi motivo para Mizoguchi fazer a sua primeira viagem ao estrangeiro, ao ser convidado a participar no Festival Internacional de Veneza. Não pensando ganhar, e não se sentindo à vontade em Itália, o realizador passou a maior parte do tempo no seu quarto de hotel a rezar, faltando por isso à cerimónia onde venceria o Leão de Prata. O filme seria premiado noutros locais, tornando-se um dos mais famosos filmes japoneses de sempre no Ocidente.
Produção:
Título original: Ugetsu monogatari; Produção: Daiei Studios; País: Japão; Ano: 1953; Duração: 92 minutos; Estreia: 26 de Março de 1953 (Japão), 24 de Novembro de 1967 (Cinema S. Luiz, Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Kenji Mizoguchi; Produção: Masaichi Nagata; Argumento: Yoshikata Yoda, Matsutarō Kawaguchi, Kenji Mizoguchi; História: Hisakazu Tsuji [adaptada dos contos “Asaji Ga Yado” e “Jasei No In” de Akinari Ueda]; Fotografia: Kazuo Miyagawa [preto e branco]; Música: Fumio Hayasaka, Tamekichi Mochizuki, Ichiro Saito; Design de Produção: Masatsugu Hashimoto; Direcção Artística: Kisaku Ito; Montagem: Mitsuzō Miyata; Figurinos: Tadaoto Kainosho, Shima Yoshizane [como Shima Yoshimi]; Cenários: Kosaburo Nakajima; Director de Produção: Kazuhiko Oohashi; Caracterização: Yoshiya Fukuyama.
Elenco:
Machiko Kyō (Lady Wakasa), Mitsuko Mito (Ohama), Kinuyo Tanaka (Miyagi), Masayuki Mori (Genjurō), Eitaro Ozawa [como Sakae Ozawa] (Tōbei), Sugisaku Aoyama (Velho Monge), Mitsusaburô Ramon (Capitão dos Soldados de Tamba), Ryōsuke Kagawa (Chefe da Aldeia), Kichijirō Ueda (Dono da Loja), Shozo Nanbu (Monge Shinto), Kikue Mōri (Ukon), Ryûzaburô Mitsuoka (Soldado), Ichirō Amano (Barqueiro), Eigoro Onoe (Cavaleiro), Saburo Date (Vassalo), Fumihiko Yokoyama (Meshiro), Ichisaburo Sawamura (Genichi).