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Avant-garde, Cinema, E. Elias Merhige, Mitologia, Surrealismo
Numa sala, um Deus vestido majestosamente mata-se, cortando-se sucessivamente com uma lâmina. De baixo de si emerge uma mulher, a Mãe Terra, que masturba o deus morto, impregnando-se com o seu sémen. A mulher dá à luz o Filho da Terra, que surge, adulto num deserto, onde se contorce convulsivamente. Este é arrastado por um grupo de homens, que depois o violentam e dilaceram. Encontrado pela Mãe Terra, o Filho da Terra surge ressuscitado, e limpo, sendo levado por ela. Ela própria é encontrada pelos mesmos homens, que a violam longamente fecundando a terra debaixo de si, e após ela e o filho serem desmembrados e enterrados, a terra ganha vida, tornando-se uma floresta.
Análise:
Antes de se tornar mundialmente conhecido, pela realização de “A Sombra do Vampiro” (Shadow of the Vampire, 2000), o americano Edmund Elias Merhige realizou este “Begotten”, um filme experimental, filmado com técnicas radicais de vanguarda, que levaram, segundo o próprio realizador, a que para cada minuto de filme fossem necessárias dez horas de filmagens e pós-produção.
Antes de mais, deve explicar-se que “Begotten” é um filme a preto e branco, com uma imagem extremamente granulada, com um contraste exagerado que torna cada imagem um conjunto de manchas que vão borbulhando no ecrã, sem textura reconhecível, e de contornos indefinidos, por vezes parecendo-se simplesmente com desenhos a carvão numa tela branca.
O filme (cujo título significa em português: “Gerado”) é uma representação de carácter mitológico, ou metafísico, indo ao que de mais profundo e visceral existe nas diversas religiões. Guiados pelos títulos no elenco que nos definem o Deus que se mata a si próprio, a Mãe Terra, e o Filho da Terra, acompanhamos uma história sem palavras que não sejam a legenda inicial que fala de luz e trevas como analogia para a vida que é a carne que preenche os ossos.
Esse contraste entre luz e trevas marca todo o filme, como dito atrás, numa história de profunda violência, sexualidade e transformação carnal, filmada de modo cru e sujo, como a própria fotografia possibilita.
Assim assistimos a uma renovação ou criação universal que, como em tantas mitologias, passa pela morte de um Deus primordial, que possibilita o rearranjo do universo a partir do seu corpo desmembrado, levando a que rituais de fecundação tragam uma nova idade fértil.
Todas essas fases são filmadas de modo assustador, por exemplo no modo como o Deus se corta sucessivamente, nas substâncias asquerosas que o seu corpo expele, no comportamento continuamente convulsivo do Filho da Terra, ou na violência das agressões, desmembramentos e violações.
A sucessão de imagens surge como um bailado, onde os contornos gerais criam movimentos que são mais importantes que o detalhe da representação ou dos actores, numa alternância entre os quadros que envolvem os três personagens principais, e imagens da transformação dos céus, tudo levando à frase inicial que descreve o mundo como a reencarnação da matéria.
Seja nas cenas de masturbação explícita, nas sucessivas mortes, na violência extrema, na sexualidade levada a um exagero de violência, na contínua transformação corporal, por vómito e mutilação, ou a todas as substâncias negras expelidas dos corpos em sofrimento, o filme torna-se um pesadelo, que funciona como uma representação mitológica mecânica, animal e visceral, desprovida de qualquer sentido literário ou beleza.
“Begotten” é interpretado por actores da companhia de teatro experimental do próprio Merhige, Theaterofmaterial, e é acompanhado de um tratamento de som composto por repetitivos sons de grilos sobre inúmeros estalidos e ressoares indistintos.
A curta metragem de 2006, “Din of Celestial Birds” é, segundo Merhige, a segunda parte de uma trilogia começada com “Begotten”.
Produção:
Título original: Begotten; Produção: Theatre Of Material; País: EUA; Ano: 1990; Duração: 72 minutos; Distribuição: World Artists; Estreia: 30 de Abril de 1990 (San Francisco International Film Festival, EUA).
Equipa técnica:
Realização: E. Elias Merhige; Produção: E. Elias Merhige; Argumento: E. Elias Merhige; Sons: Evan Albam; Fotografia e Efeitos: E. Elias Merhige; Figurinos: Celia Bryant, Harry Duggins; Direcção Artística: Harry Duggins; Efeitos Especiais: Harry Duggins.
Elenco:
Brian Salzberg (Deus que se suicida), Donna Dempsey (Mãe Terra), Stephen Charles Barry (Filho da Terra, Carne nos Ossos), James Gandia, Daniel Harkins, Michael Phillips, Erik Slavin, Arthur Streeter, Adolfo Vargas, Garfield White.
Sabe onde posso encontrar o filme?
Embora a imagem não seja a melhor, o filme está no Youtube. Espero que sirva. 🙂 https://www.youtube.com/watch?v=lHXgNn18z90
obrigada! 🙂
Razoável análise. Faltou mencionar que esta película foi produzida com baixo orçamento (U$ 20.000,00 se eu não me engano), mas ponto alto ao citar um curta metragem como continuação da referida obra.
Sobre a película, digo que faltou mais “crueza” por parte de Merhige. Deus é visto de dentro de uma cabana, algo que em minha percepção teria mais senso para o enredo se fosse filmado em uma caverna – o sangue de deus, misturado a terra da úmida caverna, traria vida a mãe-terra. Outro ponto que poderia ter sidi melhor trabalhado é a forma como a mãe-terra surge: vestida e usando máscara de carnaval?
Ter surgido nua e suja de sangue teria colocado mais dramaticidade à cena. Porém, da forma retratada, o resultado obtido soou amador demais, contrastando com as tomadas posteriores. No mais, considero também falha grave a cena no “deserto”, onde o filho da terra rasteja após ser torturado pelas “outras formas de vida” – percebe-se ali pegadas e rastros de pneus! Pegadas, tudo bem, poderiam ter sido feitas pelas criaturas que atacaram o filho da terra, mas as marcas de pneu? Sem perdão.
A ideia desta obra é boa, mas faltou senso em alguns detalhes que a denunciam como amadora (e verba pequena nunca foi desculpa para tal).
Sobre a análise, uma última avaliação: pontuar com melhorias na gramática. “Se matar a si próprio” é tão brilhante quanto “suicidou-se a si mesmo”. Há outros erros gritantes de concordância e sintaxe, mas a coesão está boa. Para apresentar bem, deve-se escrever (nesse caso, digitar) bem.
Continue com o bom trabalho 😉
Não escrevo com outro intuito que não seja compilar notas pessoais sobre os filmes que vou vendo. Às vezes o ritmo não permite captar todas as gralhas. Todas as sugestões de correcções são bem vindas.
E obrigado pelas contribuições para a análise. Obras como este filme nunca a dão por fechada. Mesmo entendendo-se que as análises são sempre pessoais.