Etiquetas
Cinema, Drama, Drama Criminal, Everett Sloane, Film Noir, Glenn Anders, Orson Welles; Rita Hayworth, Sherwood King
Sinopse:
Michael O’Hara (Orson Welles) deixa-se atrair pela lindíssima Elsa (Rita Hayworth), quando passeava no parque. Logo de seguida salva-se de um assalto, e em recompensa, o marido desta, o célebre advogado Arthur Bannister (Everett Sloane) contrata-o para servir de piloto numa viagem de iate de um grupo de amigos até ao canal do Panamá.
O’Hara aceita, mas sente-se mal entre pessoas que despreza, e o crescente amor por uma mulher que não pode ter. Sem saber bem como vê-se envolvido romanticamente com Elsa, e numa proposta estranha George Grisby (Glenn Anders), o sócio de Bannister. Mas nem tudo é o que parece, e em breve O’Hara vai ver-se vítima de esquemas que não compreende, onde ninguém é aquilo que parece.
Análise:
“A Dama de Xangai” foi a quarta longa metragem de Orson Welles, então com o peso da fama de “Um Mundo a Seus Pés” (Citizen Kane, 1941), para muitos o melhor filme de todos os tempos. Apesar de hoje ser um filme reverenciado pelos críticos, que o vêem como uma obra incontornável do Noir, foi na altura um fracasso de bilheteira, que retirou por alguns anos espaço de manobra ao realizador, produtor, argumentista e actor.
A sua história de enganos, conluios e surpresas, não é das mais simples de seguir, mesmo para os padrões do Noir. Para complicar, muito do que motiva o enredo passa-se para lá do que é dado a ver ao espectador, ao mesmo tempo que se torna difícil criar empatia por qualquer dos personagens, todos eles negros, atormentados com algum fatalismo, e movidos interesses escondidos, que vão da chantagem ao assassinato, ou à simples vontade de arruinar um rival (seja por dinheiro, amor ou simples orgulho).
A dama de Xangai que dá o nome ao filme é Elsa Bannister, a deslumbrante Rita Hayworth, então esposa de Welles, e aqui loura platinada. Mais contida que em “Gilda” de Charles Vidor, do ano anterior, Elsa não provoca explicitamente, trazendo-nos antes uma tristeza interna que nos questiona sob o peso que carrega num casamento que visivelmente a oprime. Não deixamos, ainda assim, de sentir desde o início que Elsa (uma mulher vivida, que tem no passado as casas de jogo de Xangai) domina os acontecimentos. Não é inocente a cena inicial, em que da sua carruagem assiste ao cortejar desajeitado de Michael O’Hara (Orson Welles). O tom é dado implicitamente, mostrando-nos quem conduz, e quem caminha em vão em busca de algo que não lhe pertence.
E se Elsa é a típica mulher fatal em torno de quem se geram motivações para o herói, Michael é um anti-herói Noir típico, que narra a história na primeira pessoa em tom fatalista. A narração de Orson Welles, na sua dicção caracteristicamente monocórdica, como se nos quisesse adormecer, e quase não nos deixando distinguir entre narração e discurso directo, inscreve desde logo o registo da tragédia, em que o seu personagem está envolto e da qual não poderá fugir.
O personagem de Welles ilustra-nos a típica ideia de que qualquer homem, por mais banal que seja, pode tomar a má decisão que o leva numa espiral de más decisões ulteriores, sem mais conseguir controlar o seu caminho. Para conseguir aquela que ama, ou por simples curiosidade sobre uma história que não compreende, Michael deixa-se envolver em situações que não controla, e sem o saber torna-se um mero peão em jogos que o transcendem.
Parcialmente filmado em exteriores na área de San Francisco, e no México, o filme contrapõe uma parte inicial luminosa, em que Michael contempla a vida de Elsa e deseja mudá-la, com uma parte final urbana e negra, onde Michael se vê cair num precipício sem fundo. Em contraste temos a sequência do tribunal, que nos dá um pouco de comédia, invulgar num Film Noir.
Por tudo isto o que “A Dama de Xangai” perde na fluidez do argumento, ganha como exercício de estilo. Filmado com ângulos invulgares, fazendo uso de close-ups exagerados e incomodativos, e dando uma especial importância ao contraluz (destaque para a sequência do aquário, imitada por Woody Allen em “Manhattan” de 1979), “A Dama de Xangai” é um claro manifesto do género Noir, e das suas ligações ao expressionismo alemão, de que Welles era um confesso admirador. Se já “Um Mundo a Seus Pés” é por vezes descrito como um proto-Noir, com “A Dama de Xangai” deixava o seu cunho indelével no género.
Na memória fica-nos para sempre a sequência final na feira, com os seus cenários pintados e caminhos labirínticos, lembrando esse paradigma do expressionismo que é “O Gabinete do Dr. Caligari” (Das Cabinet Des Dr. Caligari, 1920) de Robert Wiene, finalizando na cena de tiros na casa dos espelhos, esta própria lembrando outra obra expressionista, “Das Wachsfigurenkabinett” (1924) de Paul Leni. Esta sequência final é uma das mais famosas do Noir, e seria por isso imitada inúmeras vezes.
Produção:
Título original: The Lady from Shangai; Produção: Columbia Pictures Corporation; Produtor Executivo: Harry Cohn; País: EUA; Ano: 1947; Duração: 88 minutos; Distribuição: Columbia Films; Estreia: 24 de Dezembro de 1947 (França), 28 de Maio de 1949 (Portugal).
Equipa técnica:
Realização: Orson Welles; Produção: Orson Welles; Argumento: Orson Welles [baseado no livro “If I Die Before I Wake” de Sherwood King]; Fotografia: Charles Lawton Jr. (preto e branco); Produtores associados: William Castle, Richard Wilson; Música: Heinz Roemheld; Direcção Musical: Morris Stoloff; Montagem: Viola Lawrence; Direcção Artística: Sturges Carne, Stephen Goosson; Cenários: Wilbur Menefee, Herman Schoenbrun; Figurinos: Jean Louis; Efeitos Especiais: Lawrence W. Butler [não creditado].
Elenco:
Rita Hayworth (Elsa Bannister), Orson Welles (Michael O’Hara), Everett Sloane (Arthur Bannister), Glenn Anders (George Grisby), Ted de Corsia (Sidney Broome), Erskine Sanford (Juiz), Gus Schilling (Goldie), Carl Frank (Procurador Público Galloway), Louis Merrill (Jake), Evelyn Ellis (Bessie), Harry Shannon (Taxista).
Vi este filme recentemente e desiludiu-me um pouco. Tive uns problemas em embrenhar-me no argumento. Mas tal como afirmas, o estilo visual bastante vincado no género compensa. Tem cenas absolutamente fascinantes em termos de estética, sendo a minha preferida a referida cena final na sala de espelhos.
Mais uma óptima análise. E desconhecia o filme do Paul Leni, mas já adicionei à lista eheh
Cumprimentos,
Rafael Santos
Memento mori
Compreendo o que dizes, o filme é um pouco cru às vezes, e mesmo esteticamente dado a alguns exageros. Também não está no meu top 5 do género (não que eu tenha já pensado num top 5). Ainda assim tem bons momentos.
Quanto ao filme de Paul Leni, podes ler a minha análise neste blog. Embora não se trate de espelhos, a sequência final mostra um casal perseguido por diversas aparições simultâneas da mesma pessoa. O efeito é semelhante ao da casa de espelhos, e acredito que tenha influenciado Orson Welles.
Cumprimentos.
Julgo que este filme foi escolhido “ao acaso”. Passo a explicar: Orson Welles teve de escolher rapidamente um projeto durante um telefonema com um financiador, e pegou no livro que a rapariga da bilheteira lia. Não sei se a lenda é verdadeira…
Quanto ao filme, gostei bastante. Há sempre a tendência para revermos a cena final, por ser tão bem filmada e imaginativa. Concordo: a fluidez do argumento perde um bocado para o exercício de estilo. Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, é uma obra que transcende um pouco o género. Claro que se enquadra no film noir, mas sempre achei que os filmes de Welles (os que vi) fogem a estereótipos. A Sede do Mal é outro que também “transcende” os tais contornos do género. 🙂
Excelente análise de um filme complexo.
Sim, Welles é muito difícil de encaixar seja em que género for, é a sua transversalidade que o torna universal. Concordo com o que dizes sobre “A Sede do Mal”, que é o filme com que fecharei este ciclo.
Ótimo. Grande escolha para fechar o ciclo, e terei todo o interesse em ler a tua análise ao filme.
Excelente filme. Até hoje Rita Hayword é considerada a mais “bela atriz do cinema mundial”!!